Na origem da palavra, o termo racismo designa um conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre as raças e/ou etnias. Essas crenças desdobram-se em doutrinas e sistemas políticos que entendem que uma raça possui o direito de dominar outras. A principal forma de racismo identificada hoje no Brasil acomete as pessoas negras, uma herança histórica dos séculos de exploração do trabalho escravo africano pelas famílias brancas colonizadoras. Outro exemplo bastante presente no cotidiano brasileiro, é o racismo contra a população indígena, a qual já era nativa dos territórios sul americanos, e de forma similar foi escravizada e doutrinada a partir dos preceitos religiosos e de trabalho europeus.
Adicionado ao histórico de exploração, o racismo presente nos dias atuais, é fruto da falta de correções sociais após a abolição da escravatura. Correções tais como políticas e programas sociais que permitissem às gerações subsequentes destas populações, a ascensão social à um patamar igualitário ao restante da população.
A base cultural
A escravidão no Brasil teve seu início com o sistema de capitanias hereditárias e a necessidade de mão-de-obra para cultivo da terra. Porém para entendermos porquê e como esse sistema foi implantado na colônia na época, é importante olharmos um pouco mais para trás, e conhecermos melhor quem foram nossos principais colonizadores e como sua sociedade organizava-se.
Devido à sua localização geográfica, a formação de Portugal foi marcada por uma série de disputas com povos europeus e africanos. As conquistas e reconquistas das terras que hoje formam o território português, ocasionaram um fluxo de diferentes raças, e não deixaram que se fosse instaurada no país alguma hegemonia de raça por muito tempo. O resultado foi que as diversas classes sociais se misturaram e se alternaram no poder, gerando uma grande mobilidade social. A baixa consciência de uma raça branca puramente portuguesa, possibilitou que também no Brasil fosse criada uma cultura receptível a outras raças.
Um grande período da história da península Ibérica, onde localizam-se Portugal e Espanha, foi marcado pela ocupação dos mouros, povos africanos muçulmanos. O termo mouro vem do latim maures, que significa negro. O termo faz referência à cor da pele da população que foi dominada pelo Império Romano no século I antes de Cristo. No século VII d.c., com a expansão do Islamismo, os mouros adotaram essa religião e a língua árabe além do idioma nativo. Assim, com o tempo, mouro significava uma pessoa de pele escura e muçulmana. Somente no início do século VIII os mouros ocuparam a Península Ibérica, devido à rivalidade entre as religiões.
Essa ocupação trouxe os primeiros contatos dos portugueses e espanhóis com o sistema escravocrata. Durante muitos séculos, os povos cristãos europeus, dominados pelos mouros, foram escravizados por não compartilharem a mesma religião. Os escravizados serviam como fonte de trabalho em diversas áreas. As alternâncias de poder, a partir das diversas disputas pelas terras, entretanto, também fizeram dos mouros, escravos dos europeus durante vários períodos.
Na Europa, a visão do escravo era um tanto diferente daquilo que passamos a conhecer no Brasil e em outras colônias. No velho continente, o escravo nada mais era do que resultado de um processo evolutivo natural, de um conjunto da vida social, material e moral, ocasionada pela alternância de diferentes raças que ora eram conquistadas e ora eram conquistadoras. Porém, durante a colonização na América, a escravidão não estava diretamente ligada à uma tradição passada ou questões religiosas, seu objetivo principal era a exploração da força de trabalho.
O fim da dominação moura em Portugal ocorreu em 1492, apenas alguns anos antes da chegada dos portugueses nas terras sul-americanas. Os portugueses que aqui chegaram, e instalaram o sistema colonial, eram parte da europa cristã, de um povo que cresceu a partir da miscigenação de raças, e que viveu a escravidão e a exploração do trabalho escravo, principalmente motivada por diferenças religiosas.
A escravidão no Brasil
Nos primeiros anos após a chegada dos portugueses por aqui, a exploração dos recursos da colônia dava-se essencialmente através do escambo com os índios nativos, por meio do qual trocavam-se objetos advindos da europa, como o pau-brasil.
A partir de 1534, o sistema de capitanias hereditárias foi implantado, visando o cultivo da terra, em especial da cana-de-açúcar. Para esse cultivo, os grupos indígenas foram também escravizados. Entretanto, uma série de questões tornava a escravidão indígena difícil, dentre elas os conflitos de colonos com jesuítas, os quais viam os índios como um povo a ser catequizado na religião católica, e também a desfamiliarização desses povos com o formato de trabalho a que estavam acostumados os europeus. Uma saída para tais conflitos foi a adoção da escravidão negra, a partir do tráfico negreiro. Assim, o período escravocrata no Brasil teve início logo no começo da colonização portuguesa na América do Sul em meados do século XVI, e durou até o ano de 1888, com a assinatura da Lei Áurea.
O tráfico negreiro começava com o sequestro ou compra de negros (caso fossem prisioneiros de guerra) por traficantes no continente africano. Após capturados, os traficantes vendiam os escravos à feitorias, estabelecimentos onde os europeus efetivavam suas relações diplomáticas com os reinos africanos, entre elas manter o comércio, incluindo a venda de pessoas. Comprados pelos portugueses nas feitorias, os escravos eram então enviados ao Brasil, e comprados pelos senhores de engenho para trabalharem especialmente nos moinhos.
O tráfico negreiro perdurou no Brasil até o ano 1850, ano em que foi assinada a Lei Eusébio de Queirós, que proibiu a prática em terras brasileiras. A escravidão em si, só foi eliminada no país em 1888, com a assinatura da Lei Áurea, que aboliu formalmente esse sistema, já em forte decadência à época.
Séculos de escravidão e seus resultados sociais
A sociedade brasileira que se desenvolveu ao longo dos mais de 300 anos de exploração escrava, foi marcada pela exploração agrícola, pelo patriarcado, e pela divisão entre senhores de engenho e suas famílias, e os escravos. Além do trabalho nas fazendas, a mão-de-obra escrava também foi empregada nos portos (onde eles serviram como estivadores e barqueiros), no comércio (nas posições de vendedores, aprendizes, mestres em artesanato), além de serem utilizados para os mais diversos serviços domésticos. Com a ascensão da mineração no interior do país, os escravos foram também utilizados para trabalharem nas minas e outras atividades na área.
As relações sociais no Brasil, foram então desenvolvidas tendo como pano de fundo e base o trabalho escravo. Sendo esta parcela da população ordenada, reprimida, separada e calada. Gerou-se uma estratificação social e uma rígida hierarquização entre seus atores, configurada pela distância entre senhores e escravos.
Na obra “Carnavais, Malandros e Heróis”, o antropólogo e sociólogo brasileiro Roberto DaMatta, faz uma interessante análise sobre o que torna a sociedade brasileira diferente e única, ou “o que faz do Brasil, Brasil”. Para este autor, temos uma sociedade onde coexistem os ideais da igualdade e da hierarquia, refletidos em diversos rituais, e protagonizados por personagens caricatos: o malandro, o herói, e o caxias.
Um dos principais ritos brasileiros, segundo DaMatta, é o rito do “Sabe com quem está falando?”. Essa frase, marca uma distinção entre o que o autor chama de indivíduo, aquele sem uma identidade relevante no sistema de relações pessoais, um simples integrante da “massa” (povo), e a pessoa aquela que é bem relacionada, ou bem “nascida”, cujas opiniões e atitudes tem um valor maior do que o de qualquer indivíduo. Esta distinção, marca a clara hierarquia social. E ao considerarmos nosso berço escravocrata e suas heranças em nossa sociedade, vemos em geral uma população negra colocada na classe dos “indivíduos”, e uma população branca, que foi sendo dividida ao longo do tempo entre pessoas e indivíduos, a partir de suas relações e propriedades.
DaMatta também aponta, a existência de um sistema em que a tradição é ser cordial e aceitar o status quo. Por um lado temos uma sociedade marcadamente autoritária, e de outro a busca por um mundo harmônico e não conflitivo.
Traços sociais brasileiros
A partir de estudos sobre a formação da sociedade brasileira e a cultura, Farias (1997) evidencia a presença de alguns traços culturais comuns entre a população. Tais traços tendem a moldar as relações sociais em todos os níveis e a traduzir o modo de ser brasileiro. Entretanto, é importante observarmos que o Brasil é feito por um conjunto de “Brasis”. Somos um país com dimensões continentais, e por isso também nossas regiões e estados possuem diferenças culturais marcantes. Ainda assim, em maior ou menor grau, compartilhamos traços culturais marcadamente brasileiros, resultados dos nossos mais de 500 anos de história.
E é importante lembrarmos a esta altura, que a história que nos moldou e deixou sua marca em nossas principais características como povo, foi baseada no racismo, na dominação de uma população branca sobre uma população negra. Logo, esse racismo compõe hoje nossa estrutura social. Em outras palavras, ele sustenta nossa sociedade como ela é, e sem políticas corretivas, ele mantém um estado de desigualdade entre raças.
“Nossos preconceitos raciais são velados e são quase despercebidos por que ficam encobertos por uma malha de variações dificilmente definidas. Esses preconceitos velados não deixam de ser uma forma de discriminar, de impor diferenças, de relembrar quem é superior e quem é inferior nesta sociedade. (Farias, 1997)”
A cultura do nosso país é marcadamente hierárquica. Isso significa que há uma tendência à centralização do poder em grupos sociais, e ao distanciamento entre classes. Apesar de não tão claramente perceptível, os estudos antropológicos apontam ainda para uma passividade de aceitação dos grupos inferiores à esse estado hierárquico. Ao voltarmos à história da escravidão, chegamos à conclusão também que a base desta hierarquia em geral sempre foi ocupada pela população negra.
Um segundo traço característico de nossa cultura é o Personalismo. Temos uma sociedade baseada em relações pessoais, na busca pela proximidade e pelo afeto, e na figura do Pai como o detentor do domínio moral e econômico. Esse traço pode ser interpretado como uma forte herança do nosso sistema colonial, em que os Senhores de Engenho, protetores da família, donos das terras, e dos escravos, formavam a elite social e política, acompanhados de seus familiares e sucessores. Novamente, aos escravos sobravam as relações dentro da sua mesma classe, sem possibilidades de ascensão social, isso porque esse traço, mesmo retratando as relações sociais, diz respeito às relações próximas, entre familiares e amigos, portanto quem não está nesse ciclo, não possui o mesmo tratamento e benefícios.
A malandragem, ou o famoso “jeitinho” brasileiro, constitui mais um traço evidenciado por estudioso da cultura brasileira. Trata-se de uma ideia de que é preciso ser flexível e adaptável para fazer as coisas acontecerem. Aqui, os fins muitas vezes justificam os meios. DaMatta (1978) traduz a figura do malandro como aquele indivíduo que usa da esperteza para colocar a “ordem” e a “dura realidade da vida” a seu favor, sem entretanto contribuir para a “correção” do sistema. Ou seja, em um sistema fortemente desigual, o “jeitinho” consiste em um aproveitar-se da estrutura para exercer sua “vingança” e traçar seu próprio caminho de ascensão na estrutura.
Tratando-se de perfis pessoais, a sociedade brasileira é marcada ainda por um perfil aventureiro, traço que apresenta-se como uma tendência à aversão ao trabalho manual e metódico (usualmente inferiorizado) e à um perfil mais sonhador do que disciplinado. Essa característica remete aos estilos de produção e comercialização já preferidos pelos nossos colonizadores antes da vinda ao Brasil. A partir de influências judaicas, os portugueses buscavam uma economia mercantilista e burguesa, e possuíam certa aversão à agricultura e ao trabalho manual. Não à toa, os trabalhos manuais nas fazendas sempre foram destinados aos escravos. Como resultados, desenvolvemos uma sociedade que sempre valorizou a “vida de senhor” e desprezou o trabalho manual, não só com a desvalorização econômica, mas também com a inferiorização social.
É claro que evoluímos, e transformamos nossa sociedade em diversos aspectos. Não somos mais uma colônia, e não temos mais um regime de escravidão vigente. Também implementamos políticas, que a passos lentos tentam avançar em algumas correções sociais. Mas ao olhar para nossa história e identificarmos nossos traços mais marcantes, vemos uma sociedade que desenvolveu-se a partir do racismo e ainda encontra-se estruturada para a manutenção do status quo.
A pergunta que fica é: Como viramos essa mesa, e caminhamos para uma sociedade mais igualitária e menos racista?