Transcrição do Episódio 1: Gênero e Feminismo, com a convidada Ana Hining.
Entrevistadora: Tatiana Takimoto (sigla TT)
Convidada: Ana Hining (sigla AH)
TT: Olá caros e caras ouvintes, meu nome é Tatiana Takimoto e hoje vamos falar de feminismo. Para falar desse tema eu trouxe uma pessoa que eu super admiro e confio. Ela é psicóloga, é mestre em psicologia, é pesquisadora nas temáticas de sexualidade e feminismo, ela é a Ana Hining. Ana, tudo bem? Seja bem-vinda a este nosso primeiro podcast para falar sobre feminismo um tema que é mais relevante do que nunca. Muito obrigada aí pela tua presença.
AH: Oi Tati, tudo bem? Obrigada pelo convite! Em primeiro lugar, fico bem feliz de estar aqui, realmente é um tema muito importante e eu fico muito alegre de que as pessoas estejam se preocupando com esta temática.
TT: É uma temática realmente extremamente importante. É muito importante a gente conhecer a história, falar desde a origem. E a minha intenção contigo aqui Ana, é aprender muito sobre o que você tem para compartilhar, eu sei que é um tema bem relevante para nossa sociedade, para o empreendedorismo como um todo, para as organizações… e daí Ana pra gente começar, eu gostaria de fazer a minha primeira pergunta começando lá do começo: O que é gênero?
AH: É, bom, então vamos começar, primeiro que não há… importante a gente deixar claro que não há uma única forma da gente enxergar, de compreender, de teorizar o gênero. Há várias perspectivas teóricas, então há várias formas de entender o que é gênero. E daí para me situar um pouco da onde eu falo, eu costumo trabalhar bastante com a Judith Butler, que é uma filósofa estadunidense, com o que se chama de feminismo pós estruturalista, então é a partir deste lugar que eu falo. Mas essa é uma versão, há várias outras. Mas enfim, desta perspectiva a gente entende gênero, a grosso modo, como um conjunto de normas. Uma matriz normativa, que possibilita, viabiliza e organiza a nossa existência. O que isso quer dizer? Quer dizer que gênero é um conjunto de normas, significa tanto que há uma norma que é projetada como um ideal, ou seja, ideal de mulher, ideal de homem, com características físicas, de personalidade, mas há também, além dessa norma projetada como ideal, há um quadro de referência a partir do qual a gente se relaciona uns com outros e a gente confere significado à nossa própria existência. Então, nesse sentido, a gente entende que gênero não é exatamente o que alguém é, do tipo: fulano é homem, fulana é mulher, fulano é gay… mas gênero se refere mais a um conjunto de normas e discursos que determinam o que alguém pode vir a ser. Pode parecer meio abstrato, meio difícil de entender, então vou tentar dar um exemplo e colocar no concreto. Vou colocar da seguinte forma: Quando a gente nasce, a cada um de nós é atribuído um gênero e junto a essa atribuição, que é realizada por um conjunto de instituições e discursos, família, medicina, biologia, Estado, as religiões, a psiquiatria… junto dessas atribuições vem uma série de expectativas que são colocadas sobre essa criança que nasce, a depender de ser menino ou menina. Então, por exemplo, se é menina, a gente espera que a menina seja delicada, seja mais educada, seja mais propensa a atividades de cuidado, seja mais passível, menos racional. Por aí vai. Se nasce uma criança e a ela é atribuído o gênero masculino, a gente vai pensar que esse menino pode ser mais agressivo, vai ser mais desleixado com aparência e com limpeza, vai ser mais apto a atividades entendidas como racionais, matemática, física, engenharia, política e por aí vai. Pode parecer um retrato um tanto quanto caricato, mas ele faz algum sentido, ele tem algum impacto sobre as nossas vidas. Então nesse sentido é que a gente diz que gênero não é exatamente aquilo que alguém é e não reflete aquilo que alguém é, porque ele não descreve a realidade inerente do sujeito. O próprio discurso sobre o gênero, sobre o que é ser menina, sobre o que é ser mulher, sobre o que é ser homem, sobre o que é ser menino, é esse discurso que produz as ideias de homem e de mulher com as quais a gente se vê obrigado a negociar ao longo da nossa vida e aí, o que acontece quando eu cresço e quando eu estou me constituindo como sujeito e descubro que o eu sou não cabe, não me entendo como mulher? O que acontece, por exemplo, com a mulher que não quer ter filhos, com a mulher que quer ser engenheira, com a mulher que não quer casar, com a mulher que não se interessa afetivamente e sexualmente por homens, mas ela quer ter uma vida desse jeito, com outra mulher? A gente poderia levantar essas questões também sobre os homens. Mas enfim, só para dar alguns exemplos. Essas pessoas que de alguma forma não vêem espaço para si, dentro do que se entende como normal do gênero, elas acabam mais expostas a todo tipo de sanção social e essas sanções podem assumir várias formas, pode ser o pai que diz para um filho “você não vai fazer enfermagem, você vai fazer engenharia”, porque ele acha que enfermagem é profissão de mulherzinha. Entre aspas né… algo pejorativo enfim. Ou pode ser uma mãe que diz que filho morto é um filho gay, e pode chegar de fato a eliminação da vida de uma pessoa, como é o caso do feminicídio ou do assassinato de pessoas trans, quando essas pessoas são mortas simplesmente ou por serem mulheres ou por serem transsexuais. Então gênero, grosso modo, é um sistema, uma forma de organizar o mundo, que circunscreve as nossas possibilidades de vida, de existência, e estabelece uma relação de poder entre os sujeitos. E talvez a relação de poder mais óbvia entre os sujeitos seja entre homem e mulher, mas há também outros arranjos psíquicos aí. Essas relações de gênero podem ser somatizadas com orientação de gênero, orientação sexual e outros marcadores sociais, para além do gênero, tipo raça, classe, idade, deficiência, dentre outros. E, por fim, para finalizar o que se entende como gênero, é que gênero é uma construção social e aqui dificilmente alguém que estuda gênero discordaria dessa afirmação. Aqui há um certo consenso entre os estudiosos de gênero, de que gênero é uma construção social. Isso quer dizer que não é que ele não exista, ou não seja material. Quer dizer que ele não é natural, não é dado, não é imutável. Ele depende fundamentalmente da cultura, e que portanto, ele é passível de ser transformado. Então, essa forma como a gente vive gênero hoje, que é profundamente desigual, ela não é dada, não necessariamente tem que ser assim. A gente pode negociar com as normas de gênero, trabalharmos uns com os outros e a forma como a gente lida com esse sistema e transformar essa realidade, é aí que entra o feminismo.
TT: Nossa, extremamente profunda essa tua análise, essa tua explicação, fiquei bem impressionada com tudo. Você falou sobre construção social, falou sobre relação de poder e de fato, isso começa lá no sistema patriarcal, lá na época que a sociedade passou a exigir mais regulação. Eu tenho lido aqui o livro da Angela Davis e ela conta sobre a época da escravidão, sobre a revolução industrial e foi aí que o sistema patriarcal realmente se fez e foi aí que as instituições começaram a ser dominadas pelos homens. Veio então a opressão às mulheres, e as mulheres começaram a entender que essas regras impostas eram de fato uma opressão e que elas não queriam viver assim. E aí surge o feminismo, né? Começa lá no início de 1800, 1840, por aí. E assim, eu gostaria que você falasse mais sobre o que é o feminismo e para quem serve esse feminismo?
AH: Bom, o que é feminismo… talvez seja interessante a gente já começar dizendo que hoje em dia é complicado a gente falar de feminismo no singular. Hoje em dia se há um consenso entre feministas de que não há o feminismo, mas feminismos no plural, pois o movimento se tornou tão heterogêneo em si, que há várias vertentes, digamos assim, na falta de uma palavra melhor, vamos chamar de vertentes. Então há o feminismo negro, o transfeminismo, o feminismo socialista, enfim, há várias possibilidades né.. Então é um movimento que é muito amplo, não necessariamente eles concordam sobre todas as pautas, não necessariamente focam sobre os mesmos problemas. Uma segunda observação é que feminismo não é o contrário de machismo. Tem muita gente que quando começa a entrar em contato com o tema pensa que seja isso né, que tem o machismo e tem o contrário que é o feminismo. Mas não se trata disso, isso está completamente equivocado. O machismo, ele parte genericamente, vamos dizer assim, da premissa que as mulheres são inferiores de alguma forma aos homens, ou seja, ele instaura uma desigualdade de gênero e abre espaço para todo tipo de violência contra mulheres e outros grupos que também são vistos como inferiores ao homem cisgênero e heterosexual. Ou seja, não só mulheres são as visadas pelo machismo, mas o machismo incide sobre todos nós. Já o feminismo, ele é um projeto político de combate a essa desigualdade. Hoje se entende que o gênero não deve ser a razão nem para obtenção de privilégios e também não deve ser a razão da promoção de violência de abuso e de assédio. Então o feminismo é um projeto democrático. Tem gente que pensa que feminismo é a ideia de uma certa supremacia feminina, então agora a gente vai inverter, as mulheres são melhores. Não. Não se trata disso também. Não tem nenhuma feminista que vai dizer que mulheres são melhores que os homens, nada disso. Bom, mas aí então voltando para a pergunta o que é o feminismo, feita essas duas considerações iniciais, acho que hoje também a gente pode ter uma compreensão mais ampla de feminismo, a gente costuma pensar que o feminismo é um movimento de mulheres para mulheres e isso não está errado, mas é um pouco redutor, digamos assim. Desde o fim do século passado mais ou menos, há várias teóricas feministas que vem afirmando que o feminismo acaba produzindo o sujeito que ele alega representar. O que isso quer dizer? Quando a gente se organiza num movimento político que presume de alguma forma a existência da mulher ou das mulheres como uma entidade, ou seja, quando a gente universaliza essa experiência da mulheridade, corre-se o risco de produzir outras exclusões, pois a forma como a gente experiência as nossas mulheridades são distintas. Por exemplo a Angela Davis fala muito sobre isso. A experiência das mulheres negras como experiência profundamente diferente da experiência das mulheres brancas. Então a gente tem que estar atenta, que quando a gente propõe um movimento político que alega representar a mulher ou as mulheres, pode ser que a gente acabe reproduzindo uma lógica sexista de fixar este sujeito mulheres. O que o sexismo faz é isso, o discurso sexista, ele separa dois mundos, o mundo das mulheres, o mundo dos homens, joga um monte de significados em cima de cada um deles e enfim, produz essa separação. Então a gente tem que cuidar quando a gente pensa no sujeito do feminismo, a gente tem debatido muito isso, quem é o sujeito do feminismo? A gente tem que cuidar para não universalizar, não homogeneizar essa experiência das mulheres porque são experiências muito diversas. Então a gente tem reformulado isso que a gente chama de sujeito do feminismo e cada autora ou autor teórico formula isso a partir da sua própria linguagem de formas muito distintas, mas acho que hoje a gente poderia dizer que o sujeito do feminismo não são só as mulheres, são os subalternizados das políticas de gênero. São os dissidentes do sistema sexo gênero ou os dissidentes da diferença sexual ou aqueles que as vidas são precarizadas por conta do gênero. E dá para formular de diversas outras formas, mas o ponto é: o feminismo é para as mulheres mas vai para além delas. E já pulando para sua segunda pergunta, sobre quem se beneficia, aí já tem uma dica. Se o feminismo não é só para mulheres, então todo mundo pode se beneficiar do feminismo e como eu vejo da minha perspectiva feminista, o feminismo é um processo democrático. Todo mundo tem a ganhar com ele. Isso não quer dizer que homens não vão perder espaço (risos), lamento dizer, não muito, mas eu lamento que alguns vão perder espaço porque os homens ocupam espaços não porque eles são superiores, ou melhores, ou mais competentes do que nós, eles ocupam porque o acesso a esses espaços nos foi restringido de diversas formas e historicamente. Então quantas de nós, assim, tu deve ter várias experiências, por exemplo quando há um processo de seleção para uma vaga, e tem mulheres competindo com os homens e às vezes você está lá competindo, você é mulher, você sabe que você é competente, que você é mais preparada para aquela vaga, mas um homem acaba sendo selecionado simplesmente pelo fato de que é homem. Há privilégios que causam a vida dos homens mais fácil e esses privilégios serão revistos à medida que o feminismo avance. Mas eu não acho que isso deve ser visto como algo negativo. (risos) o fato de que os homens vão perder espaço num certo sentido não é algo negativo.
TT: Não não, de forma alguma, e principalmente nesse mundo da tecnologia que é o mundo que eu venho, isso acontece muito. Predominantemente as empresas são compostas por homens. Como você falou, no processo seletivo as perguntas às vezes beiram ao ridículo. Então, perguntar “O que o seu marido faz?” “O seu marido deixou você vir aqui?” Ou se é para uma área de desenvolvedores de software e perguntam “Que jogos você joga?” Mas as mulheres, nem todas gostam de games, então de fato, desde o processo seletivo a gente vê essa diferença, o privilégio que eles dão aos homens, muito embora muitas empresas não se dizem machistas e não se colocam como empresa que privilegia o homem, mas internamente até inconscientemente eles fazem isso, pois é uma coisa muito cultural também. E aí a gente vê muito nas empresas a questão do assédio, do assédio moral, e com relação a isso Ana, eu tenho visto alguns vídeos da Maria Homem, uma psicanalista também, que trabalha muito com a questão do feminismo e tem um vídeo onde ela diz que a sociedade se organizou na história com uma valoração, uma supremacia do homem branco nas relações sociais e junto com isso veio uma misoginia e o discurso de que a mulher não vale tanto quanto o homem e que seu desejo deve ser demonizado. Ela cita isso num desses vídeos e comenta sobre misoginia e a gente percebe em alguns lugares, mesmo dentro de algumas empresas a gente percebe e eu venho pesquisando sobre o assédio e o que isso causa na mulher em termos de depressão e enfim, dos sentimentos que isso gera. E aí eu te pergunto, quais são os efeitos psíquicos na mulher quando o homem ou a sociedade coloca ela como um ser inferior e demoníaco? AH: Em primeiro lugar eu diria que esses efeitos psíquicos a despeito de quais eles forem, que vão variar de acordo com a singularidade de cada pessoa, eles são incontornáveis, eles são inevitáveis, eles vão existir porque o discurso sexista ele afeta todas nós e nesse sentido há efeitos psíquicos sobre todas nós. Eu acho que… o que são esses efeitos psíquicos? Eu diria que eles são a dimensão subjetiva da maneira como a gente negocia com as normas de gênero. E dizer que eles são dimensão subjetiva e pensar nesse efeitos psíquicos, isso não quer dizer que eles são privados. Essa dimensão subjetiva ela está profundamente enraizada no campo político porque inclusive se a gente pensar num dos grandes slogans feministas né, que diz que o pessoal é político, o que isso quer dizer? Isso quer dizer que a dimensão que a gente considera privada e individual de alguém, ela não pode ser pensada fora das relações de poder e dos arranjos sociais nos quais a pessoa se insere. Então esses efeitos psíquicos eles são efeitos também de poder e eles não são privadas. Eles dizem respeito a determinados arranjos sociais e aí, particularmente com relação às mulheres, eu acho que esses efeitos psíquicos lembram que esses eventos são políticos, eles podem ser vários, mas eles geralmente são nocivos. Que é muito difícil crescer e se constituir como sujeito em meio a discurso que te dizem de diversas formas por filmes, novelas, livros, propagandas, nas suas relações de amizade, nas suas relações afetivas, discursos que te dizem que você é inferior, que você não pode fazer certas coisas ou que você deve fazer tais coisas e que se você achar ruim, se você reclamar, se te causar sofrimento, vão te dizer “eu lamento, é assim que as coisas funcionam”. Muitas mulheres acabam internalizando tudo isso e acreditando nesse discurso como se ele fosse a verdade. Pode ser muito ruim, pode ser muito danoso, pode causar sofrimento a ponto da pessoa precisar de ajuda psicológica, recorrer a um psicólogo a um psiquiatra a uso de remédios, pode ser também, pra gente não ficar só no lado negativo né, pode ser que a pessoa também adquira uma perspectiva crítica diante de tudo isso e que ela consiga de alguma forma ampliar as possibilidades na vida dela e afrouxando um pouco essa capacidade coercitiva da norma de gênero.
TT: Esses dias eu estava conversando também com outras pessoas e outros colegas e pensando que na verdade essas mulheres que se diferenciam pela forma crítica de pensar, são poucas né Ana, as que se abalam e que precisam de um apoio psicológico, me parecem que são muito mais do que essas que lutam de fato, que são as militantes pela causa feminista. É isso mesmo? AH: Eu não sei, eu acho que depende muito do ambiente mesmo né, porque por exemplo, quando você está sozinha, é muito mais difícil resistir mesmo, se você não encontra suporte nos outros e aí o que eu fico pensando é que por isso que o feminismo e o combate a desigualdade de gênero não pode ser uma tarefa só das mulheres, é de todo mundo porque senão a responsabilidade tudo recai sobre a smulheres e sobre as mulheres individualmente. Sobre aquela mulher, então por exemplo se você está numa equipe de trabalho em que convive com 15 homens e você é a única mulher, fica difícil mesmo. Você vai acabar ficando sobrecarregada e corre o risco de se você apontar alguma coisa, se alguém fez uma piadinha machista e não gostei, você conta isso e diz que não foi legal. Pode ser que continuem rindo de você. Ou por exemplo, se você sofreu assédio sexual no seu trabalho e você vai falar com seu chefe. Pode ser que seu chefe não leve isso a sério. Pode ser que seu chefe te tire para louca histérica e você ainda quando apresenta essa queixa corre o risco de ser prejudicada no trabalho. Muitas mulheres são ameaçadas de demissão né, caso venha a público com denúncias. Então as mulheres acabam realmente tendo que tolerar muita violência, muito preconceito e discriminação sozinha e então, não sei em termos numéricos, realmente não sei te dizer se a maioria internaliza e sofre ou se a maioria consegue resistir, eu acho que depende do ambiente.
TT. Eu acho que é inclusive uma pesquisa bacana pra gente fazer e ver como a gente pode ajudar mais essas mulheres. E puxando essa mesma pergunta sobre efeitos psíquicos para a sociedade. Quais seriam esses efeitos na sociedade de ter a mulher sendo considerada como ser inferior?
AH. Eu acho que talvez a resposta que eu tenha para esta pergunta seja simples e curta, mas é porque o efeito disso é a produção de uma sociedade absurdamente injusta, desigual, violenta uma democracia precária. Eu digo injusta e desigual porque a gente supostamente somos iguais perante a lei, só que não somos. O gênero deixa muito claro que não somos. Todo tipo de violência contra mulheres e contra outras pessoas que não correspondem às normas, todas as violências é injustificada. A gente vê muita agressão contra a mulher, o estupro, assassinato, chegam a esse ponto e não é incomum, os números não são baixos, os números de assassinatos de mulheres. Então nesse sentido que o efeito disso é uma sociedade muito… uma democracia muito precarizada.
TT. E falando nessa violência toda, a própria Maria Homem cita que é uma agressão a mulher a cada 4 minutos. Ou seja, nesse tempo que a gente está conversando, várias já sofreram agressões e como que a gente faz Ana, pra gente desconstruir esse discurso machista e misógino, como a gente pode fazer para trabalhar os homens para que a gente quebre essa misoginia?
AH. Com relação aos dados, todos os especialistas dizem que há uma grande subnotificação. Esses dados não refletem a realidade. Provavelmente a gente em muito mais casos do que esses que são registrados, o que faz a situação ainda mais grave. Mas pensar como desconstruir o discurso machista e misógino? Acho que em primeiro lugar, se a gente pensa especificamente na violência, a gente tem que desconstruir a ideia de que a mulher é subserviente mesmo, que ela gosta de apanhar e ser dominado. Porque tem essa ideia. E a contrapartida dessa ideia é que homem é agressivo por natureza e que ele não consegue se controlar. E lee não sabe se controlar e ele acaba batendo nas mulheres e estuprando as mulheres e isso é simplesmente uma inverdade. Não tem nenhum argumento científico que embase essa interpretação. Não tem, não existe, nenhum estudo psicológico, neurológico que embase essa interpretação de que homens são naturalmente mais violentos e não sabem se controlar e portanto estupram e matam mulheres. Então, o que há… há na verdade um discurso sexista que levam homens a se sentirem autorizados a nos violentarem e nos matarem. E porque as nossas vidas são consideradas menos importantes né… então tem um discurso sexista que a partir do qual o homem se constitui em que a forma com o que ele aprende a lidar com o conflito e com as relações é a partir da violência. Mas isso não quer dizer que ele seja inerentemente violento. É uma questão de como a pessoa se constrói de aprendizado. E a violência contra a mulher ainda que seja crime, é legitimada socialmente. Então quando uma mulher é agredida, sempre tem alguém para aparecer dizendo “ah, mas alguma coisa ela deve ter feito para irritar o marido, ou para irritar o namorado, seja lá quem for, ou o pai, seja lá quem for quem bateu nela. Ou quando a mulher é estuprada, também não é incomum a gente veja o policial que está atendendo a denúncia que pergunte para ela: mas como você estava vestida? Estava usando uma saia curta? Então assim… o tempo inteiro a responsabilidade é jogada de volta para a mulher né, se você apanha é porque você mereceu, se você foi estuprada é porque você mereceu. E o homem sempre nesse lugar infantilizado. Da pessoa que não pode ser responsabilizado. Então tem que começar a desconstruir por aí. Mas assim, não é tarefa fácil, não vai ser do dia pra noite, vai levar tempo porque isso é uma coisa muito enraizada na sociedade e aí eu fico pensando em várias frentes feministas possíveis. Uma quando, por exemplo, os movimentos feministas se articulam e se manifestam nas ruas. Quando as feministas se reúnem na arena pública e levam cartazes que dizem “meu corpo minhas regras”, “minha roupa não é um convite”, que são slogans feministas famosos também né. Isso tem um efeito. Isso reverbera na forma como a gente se organiza na sociedade e, para além disso, a política de educação, que eu acho que são muito importantes, principalmente neste momento político que a gente está vivendo. Eu acho que essas políticas de igualdade de gênero nas escolas, elas são essenciais, se a gente projeta um futuro mais igualitário, e aí não tem nada de propagando homosexual, de kit gay, de mamadeira de piroca, (risos) e eu acho um absurdo que isso seja levado para essa direção, mas vamos deixar claro, não tem nada disso. O estado e a escola devem assumir seu papel na construção de um futuro onde mulheres tenham as mesmas oportunidades e onde homens aprendam a não nos violentarem. Porque a gente tem que ensinar os homens a não nos violentarem. E isso é papel da escola.
TT: Sensacional. Isso inclusive eu vi numa escola numa viagem que eu fiz lá para os EUA, onde eles em determinado momento separam as meninas dos meninos, justamente para ensinar os meninos que as meninas não estão ali para sofrerem agressões e do outro lado, eles educam as meninas a terem mais auto estima, a se defenderem, e desde muito cedo trabalhar com elas a questão da autonomia, do empreendedorismo, para elas conseguirem ter dignidade. Então muito bacana isso que você falou, porque isso tem que vir mesmo da educação. AH: É, porque a gente tem que fortalecer as meninas e as mulheres, mas não só. Não basta, não é suficiente a gente investir num lado da população, a gente tem que educar os homens também. E isso tem que começar lá da infância, porque depois a coisa fica bem mais complicada.
TT: E eu adorei também quando você falou da questão que o homem acaba sendo infantilizado por não ser responsabilizado pelos seus atos. E isso é muito cultural né Ana, isso vem desde Adão e Eva, quando a gente fala dessa questão, dessas violências entre homem e mulher. E a gente vê alguns comportamentos também, que eu acabo não entendendo muito bem, confesso, de mulheres que sofrem muitas agressões. Como a gente viu esses dias, no jornal, a mulher levou 5 tiros e depois ela quis ir lá, deu um beijo no marido e quis continuar com ele, pediu pra justiça perdoar essa pessoa… diante disso, como que a gente muda esses comportamentos, como a gente pode quebrar essa cultura, sensibilizar essas pessoas, e mudar esses comportamentos, tanto do homem quanto da mulher? AH. Eu acho assim, nenhum caso individual pode, tipo esse que você mencionou, da mulher que levou vários tiros e decidiu perdoar o marido. Nenhum caso desse pode ser instrumentalizado para uma interpretação sexista, que diria do tipo… Viu, se ela levou 5 tiros, etc, o cara tentou matá-la e ela perdoou, então isso não é um problema. Então as mulheres gostam disso… Eu acho que assim, não sei o que se passa com essa mulher. Acho que teria que ser avaliado individualmente, tem que ver em que grau de sofrimento ela pode estar, tudo isso… e o fato é que a forma como ela enxerga o que aconteceu e se ela decidiu perdoar e continuar com ele ou não , isso não muda a violência que ela sofreu. Isso não muda o fato de que a violência que ela sofreu é uma violência machista. Então, como mudar esses comportamentos, é realmente muito difícil. A gente tem que ir trabalhando isso na sociedade. Temos que ver alguns caminhos possíveis, mas eu acrescentaria que transformações sociais vão acontecer necessariamente nas relações sociais. Seja entre indivíduos ou entre grupos. Eu acho que a gente tem que aprender a lidar com os outros, com os conflitos, aprender a ouvir uns aos outros. Reconhecer que o outro também é digno de respeito, que a vida do outro é digna de ser preservada e assim a gente talvez consiga construir um novo modo de se relacionar e viver junto em sociedade. TT: As mulheres quando sofrem essas opressões com certeza ficam com vários efeitos psicológicos. Elas sofrem, elas entram em depressão. Como faz para superar esses preconceitos e superar essas histórias de violência?
AH: Eu particularmente, eu aposto nas saídas coletivas. Quando uma mulher sofre violência, somos todas nós que implicitamente somos violentadas. Então a responsabilidade de lidar com a dor, com o sofrimento, com o dano psíquico que uma violência causa não pode ser só da mulher que passou por isso, é um problema de todos nós, como sociedade. Acho importante que a gente assuma isso, que a gente se implique politicamente com isso e sobretudo os homens que são os mais implicados por enquanto, que acham que isso não tem nada a ver com eles e a gente que se vire. Então, o combate a desigualdade de gênero não pode ficar só nas nossas mãos. Então eu diria que a dor de uma mulher pela violência, pelo preconceito, nunca é só dela. Não é individual. E nesse sentido eu apostaria nas formas de se fortalecer no coletivo. Conversar com outras mulheres, compartilhando experiências, se articular politicamente. Se articular politicamente é importante pra pegar essa dor e mobilizá-la de alguma forma, dar um significado. E quando eu digo se articular politicamente, eu não estou dizendo entra num partido e vai. Não. Se implicar politicamente quer dizer… bom você está numa empresa e viu que há processos de exclusão, de acesso e de vioLência, se articula, chamas outras mulheres para conversar, chama os homens, que estão interessados em trabalhar contra isso né.. Faz um grupo, propõe um grupo de discussão, alguma atividade de conscientização, nesse sentido que eu digo. Se mobiliza. Pega essa dor que te parece individual e tenta construir algo com ela, algo diferente, que vai te fazer ressignificar isso pelo qual você passou.
TT: É a gente fala muito em rede de apoio, quando converso com outra mulheres, eu falo como é essencial a gente ter uma rede de apoio para justamente compartilhar essas dores e juntas a gente ver como se fortalecer. Então Ana, estamos chegando ao final, eu achei sensacional a nossa conversa, a gente passou muito pra essa questão da violência da mulher, da misoginia, dos efeitos psicológicos e eu acho que o feminismo tem muito a ver com isso mesmo, nasceu porque as mulheres se sentiam oprimidas e daí começaram toda uma luta política social para poderem combater a desigualdade. Eu anotei para um próximo podcast nosso, já fica aí o convite para você, pra gente falar sobre as diversas vertentes do feminismo. Entrar na interseccionalidade mesmo. Sei que você já trabalhou bastante com mulheres trans. Já deixo o meu convite para gente debater sobre como quebrar esses discursos com relação ao machismo e essa opressão que as mulheres vivem. Muito obrigada Ana, estou realmente muito feliz com a nossa conversa! AH: Obrigada também, também gostei muito e aceito o convite para uma próxima.
TT. Obrigada!