Transcrição do Episódio 3: Primeira e Segunda Ondas do Feminismo
Entrevistadora: Tatiana Takimoto (sigla TT)
Convidada: Ana Hining (sigla AH)
TT – Olá caros e caras ouvintes, meu nome é Tatiana Takimoto e este é o canal Papo Diversidade. Hoje vamos falar sobre a primeira e a segunda onda do feminismo. Mais uma vez eu trouxe a Ana Hining como a nossa convidada, tudo bem Ana?
AH – Oi! Tudo bem!
TT – Muito obrigada pela presença no nosso canal Papo Diversidade. A Ana sempre traz um conteúdo muito rico, porque além dela ser psicóloga e mestre em psicologia, a Ana estuda sobre essas temáticas, é pesquisadora nas temáticas da sexualidade e feminismo. Por isso a gente faz questão de trazer a Ana aqui nesse canal. Já é o segundo podcast dela e a gente tem mais um terceiro episódio pra gravar. Muito obrigada pela sua presença Ana! E a minha primeira pergunta pra você é sobre esse conceito de ondas, por que a gente fala Ondas do Feminismo?
AH – É, então, essa é a forma típica que foi adotada para se referir aos diferentes projetos feministas, mas não é um consenso, digamos assim. As ondas se referem às gerações de processos feministas, mas esse tipo de periodização, não é uma questão classificada. Algumas autoras simplesmente rechaçam essa definição, outras usam aspas cada vez que vão falar segunda onda, terceira onda, colocam aspas, outras problematizam e outras simplesmente não trabalham nesses marcos assim né… ondas não chegam a ser uma questão. E enfim, algumas razões para controvérsias, vou mencionar algumas. A primeira seria o problema com a metáfora das ondas. Essa metáfora sugere que haveria uma substituição a cada novo projeto, como se viesse uma onda diferente que substitui a antiga e como se não sobrasse nada da onda precedente e aí isso acaba dando uma certa ideia de evolução, como se houvesse um tipo de superação que tornasse a onda anterior ultrapassada e essa é uma noção complicada porque não é a ideia, não é trabalhar em marcos de evolução e de substituição. Esse seria o primeiro problema. Além disso, há o problema de um apagamento de movimentos minoritários dentro do feminismo, porque quando a gente define o que é a primeira, segunda e terceira onda, a gente acaba definindo critérios dominantes do que é o feminismo, e neste sentido várias manifestações feministas acabam sendo excluídas, porque ela passa uma certa ideia de uniformidade sobre um movimento que na verdade sempre foi bem diverso. Uma das principais críticas é que a periodização em ondas, nesses termos, ela acaba sendo na verdade a história do feminismo branco dos EUA, sobretudo e ela acaba se sobrepondo a todos esses outros movimentos minoritários de resistências de mulheres, que por algumas razões, não se tornaram hegemônicos na trajetória feminista. E aí um terceiro ponto de problematização é que mesmo entre aquelas que adotam essa periodização, ela não é muito claro onde começa uma onda e onde termina a outra. Há divergências. E tem autoras que dizem que a segunda onda é tal período e para outras autoras isso já é a terceira onda e vice-versa. Então não é possível a gente objetivamente dividir os períodos e nomeá-los. Toda a segmentação, toda periodização, envolve disputa de poder e reconhecimento. Então é aquela coisa, a história é contada pelos vencedores e ainda que o feminismo seja movimento contra hegemônico, internamente há uma disputa de poder. Então quando determinado segmento se enuncia como uma nova onda, com uma determinada, enfim, como segunda ou terceira onda, isso confere esse segmento poder e legitimidade. Então essa distinção, no fim das contas, é elucidativa, nos permite ver algumas modulações, de ver como o feminismo foi se transformando e lidando com os desafios que vivia, os diferentes desafios, porque vai variar de contexto histórico e de cada local também, mas a gente não pode se amarrar a 100% dessa divisão, porque se a gente se amarrar 100% a essa divisão a gente acaba ofuscando outros movimentos minoritários. Então é mais interessante a gente olhar para a história do feminismo e procurar rupturas, descontinuidades, transformações e manutenções mesmo né, sem buscar uma história linear e evolutiva e sem esperar que uma onda que sucede a outra, supere aquela. Enfim, há coisas que se mantém né…
TT – Sensacional a sua explicação Ana, adorei. Você trouxe uma contextualização muito bacana sobre EUA, falando sobre o feminismo branco, é bom mesmo a gente ter esse olhar mais crítico, entender que são pontos de vistas das diferentes autoras, das diferentes problematizações. É bom a gente ficar antenada nessa questão né, quando a gente fala de primeira onda, a gente está falando muito dos EUA e isso você trouxe pra gente de uma forma muito clara, muito sensacional. Adorei. E agora eu gostaria de aprofundar mais em cada onda, levando em consideração tudo que você falou, esses recortes e tudo mais né, mas vamos nos aprofundar mais em cada uma delas e nesse sentido eu gostaria que você comentasse os principais marcos dessa primeira onda, sobre o seu ponto de vista.
AH – Bom, a primeira onda, tradicionalmente, se diz que vai do século XVIII até meados do século XX, então é um período bem amplo né, e enfim, mesmo dentro desse período há modulações. No século XVIII o movimento feminista é marcado, bem marcado, por um viés iluminista. O que isso quer dizer? Quer dizer que as mulheres situavam as suas demandas dentro do projeto iluminista. Ou seja, elas não estavam discutindo a questão feminina, a emancipação feminina como algo em si, na verdade elas queriam, elas situavam a própria emancipação dentro dos princípios dos direitos natural moderno que, enfim, fazia parte do projeto iluminista. Eu acho talvez que os dois maiores nomes desse período sejam a Olympe de Gouges, na França e a Mary Wollstonecraft, que é uma inglesa. E aí tem um documento importante, um texto importante que quem escreveu foi Olympe de Gouges, que se chama Declaração dos Direitos das Mulheres e Cidadãs, que é uma resposta à declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que foi proclamado pela Revolução Francesa, então é uma resposta porque as mulheres meio que foram esquecidas, então acho que nesse período é isso que se destaca né. Aí depois no século XIX ainda se considera primeira onda, mas já há algumas modificações, que a narrativa hegemônica sobre a primeira onda iguala ela ao movimento das sufragistas e enfim, a gente vai ver porque isso é problemático, porque isso exclui outros movimentos. Quando você vai estudar, você pega livros, artigos, compreende sobre a história do feminismo e você pode passar tranquilamente do início ao fim, sem ver uma menção a mulheres negras, por exemplo, só para mostrar como há uma exclusão aí.
TT – Ana, então a gente pode considerar que o sufrágio foi um marco importante da primeira onda né.
AH – Tem um livro que considera isso segunda onda, eu achei um livro que considera isso segunda onda, mas a narrativa tradicional, a mais aceita digamos, é primeira onda.
TT – Legal Ana, e você comenta muito sobre o feminismo branco e não aparece o feminismo negro, eu queria que você comentasse um pouquinho mais a respeito da história, porque antes disso, as mulheres brancas, elas foram protagonistas na causa da abolição, né, elas lutaram junto com as mulheres negras na questão da abolição. Eu queria que você trouxesse um pouquinho dessa história, um pouquinho anterior, só pra gente entender mais sobre esse contexto histórico das mulheres brancas e das mulheres negras.
AH – É, o movimento sufragista, o movimento de mulheres sufragistas e abolicionistas nos Estados Unidos é marcado por várias tensões com relação ao racismo das mulheres brancas, enfim… mas é que inicialmente as mulheres brancas se implicaram na causa abolicionista porque quando ocorreu ali, no século XIX, o processo de industrialização nos Estados Unidos, isso acabou tirando das mulheres brancas a experiência do trabalho produtivo né. Assim, as mulheres sempre trabalharam dentro de casa, mas quando no estágio do capitalismo pré-industrialização, o trabalho delas de casa é considerado produtivo, havia algum status ali ainda né, mas quando a produção se desloca, quando elas perdem o campo de trabalho para as fábricas, quando o trabalho é feito na fábrica, o trabalho delas acaba se tornando obsoleto. Então junto da industrialização, foi criada uma ideologia da feminilidade. O que foi isso? Foi uma ideologia que disseminava nas mídias da época, revistas, romances, que dizia que as mulheres, as brancas, evidentemente, que elas eram habitantes de uma esfera privada que era totalmente separada do mundo do trabalho produtivo, do mundo público, este pertencia aos homens. Então o que ocorreu ali na época do capitalismo industrial, ocorreu a divisão entre economia doméstica e economia pública, e aí isso acabou instituindo ainda mais fortemente a inferioridade das mulheres, então mulher se tornou sinônimo de mãe e dona de casa, e isso com conotação de inferioridade e isso passou a não ter mais o status de trabalho, porque afinal de contas, criar filhos e cuidar da casa é um trabalho. Hoje a gente briga muito por isso, pra dizer que isso é um trabalho, trabalho não remunerado, trabalho não reconhecido, mas é um trabalho. Então, enfim, essa modificação na sociedade estadunidense acabou jogando muitas mulheres nesse espaço privado, sem nenhum status, sem nenhuma participação na vida pública. E aí essas mulheres que perderam prestígio que tinham no lar, elas começaram a se envolver na causa abolicionista.
TT – Exato Ana, isso é bem importante de trazer né, toda essa parte das mulheres de não terem direito à política, de não terem direito de participar das rodas de conversa onde estavam os intelectuais, por não terem direito ao estudo, por ficarem muito tempo dentro de casa, elas começaram a se comparar de certa forma às escravas né… e viram que de uma certa forma, claro infinitamente menor, mas elas também eram oprimidas. É claro que as escravas sofriam muito mais, eram castigadas, açoitadas, as mulheres brancas não, mas sofriam outras formas de opressão. E isso trouxe essa comparação que elas fizeram, se sentiram oprimidas e por isso começaram a lutar pelo abolicionismo.
AH – É, então, houve uma identificação ali né, que enfim, essa relação de subserviência imposta pela ideologia da feminilidade e pelo capitalismo industrial fez com que as mulheres desenvolvessem críticas à instituição do matrimônio, por exemplo, que não era comum até então. Como uma instituição potencialmente opressora e aí elas começaram a se identificam com a causa abolicionista e se engajaram na causa abolicionista. Aí tanto as donas de casa de classe média quanto as operárias, se engajaram, mas as donas de casa de classe média acabaram se tornando mais visíveis porque no fim das contas elas tinham mais tempo, mais recurso para se implicar na organização do movimento e isso fazia também com que elas tivessem algum tipo de reconhecimento, como elas tinham perdido prestígio do trabalho, se engajar na causa abolicionista fez com que elas fossem reconhecidas como sujeitos que se articulam politicamente e tal.
TT – Então essa época foi uma época que marcou uma certa aproximação entre mulheres brancas e mulheres negras né, em função da abolição. Tem alguns livros que descrevem situações de muita sororidade inclusive, com as mulheres brancas defendendo as mulheres negras. Foi uma época de muito apedrejamento, então elas defendiam as mulheres negras. Estavam do lado delas. Como que você vê isso Ana?
AH – Aham… é sim, tiveram aquelas mulheres que se engajaram na causa abolicionista e tinham uma postura bacana né, de inclusão mesmo, mas havia também aquelas que eram explicitamente racistas, ou seja, pra gente é irônico olhando hoje. Mas não é porque elas se engajaram na causa abolicionista que não eram racistas. Inclusive, havia até me parece um certo abuso da metáfora da escravidão. Quando as mulheres brancas se comparam à condição de escravidão, pra mim isso me parece abusar um pouco da noção da escravidão, porque não são coisas comparáveis. Quando você faz uma comparação desse tipo, você talvez corre o risco de tirar a seriedade dessa noção de escravidão.
TT – E voltando agora para a questão do sufrágio Ana, foi uma época voltada por uma luta né, do sufrágio das mulheres brancas e o sufrágio dos homens negros, eles estavam acontecendo na mesma época. Eu gostaria que você comentasse sobre isso, porque me parece que foi uma época bem marcada pelo racismo. Porque as mulheres brancas ficaram com medo dos homens negros conseguirem o sufrágio, conseguirem o direito ao voto e elas não. E assim seria só homens com direito ao voto e por isso elas fizeram de tudo e lutaram bastante para que não fossem os homens negros e sim as mulheres brancas que tivessem o direito ao voto. Queria que você comentasse um pouquinho sobre essa época, sobre essa história.
AH – É, bem complicado aí, porque elas temiam que se os homens alcançassem o direito ao voto antes delas, elas temiam que os homens negros se igualariam aos homens brancos, ou seja, os homens negros se tornariam superiores a elas. Então uma visão muito míope, né, porque descarta completamente o peso que a categoria raça tem sobre a organização da sociedade né, como se fosse possível, a gente já passou um bom tempo desde que o voto foi estendido aos homens negros e às mulheres e a gente vê que não é tão simples assim que os homens negros são superiores às mulheres. Não funciona assim né, há mais nuances nas relações de poder e as sufragistas realmente fizeram alianças com extratos explicitamente racistas da sociedade. Elas inclusive usavam o argumento da supremacia branca, porque, o que elas argumentavam? Em vez de estender o voto aos homens negros, os homens brancos deveriam estender o voto às mulheres porque aí sim a gente garantiria a supremacia branca na sociedade estadunidense. Tinha uma liderança sufragista que chegava a argumentar que, abre aspas, o voto feminino resolveria o problema negro. Então, várias delas acreditavam que a opressão dos homens contra as mulheres era a opressão, a maior opressão do mundo. Pra elas mulheres era o coletivo definitivo de articulação, então elas tinham dificuldade de se entender tanto com as mulheres operárias como com as mulheres negras, porque as mulheres operárias e as negras, elas tinham outras prioridades, elas tinham enfim, outra vida, quanto as sufragistas. Para elas tinham outras coisas mais urgentes relacionadas à questão de trabalho e de vida e a reivindicação pelo voto acabava parecendo uma coisa meio abstrata que não ia ter tanto efeito sobre a vida delas.
TT – Ana, eu queria aproveitar esse conceito do sufrágio, só para trazer uma pequena curiosidade sobre o Japão, bem dessa época também. Lá em 1920, mais ou menos, nessa década, havia também algumas mulheres que estavam lutando pelo sufrágio, muito em decorrência do sufrágio dos Estados Unidos, elas eram muito influenciadas, inclusive viajaram para os Estados Unidos para ver o que estava acontecendo lá e passaram 25 anos lutando por isso, foi somente depois da guerra, em 1945 que elas conseguiram o direito ao voto, e muito em função do término da guerra mesmo. Como morreram muitos homens, maridos e filhos e tal, aí o Governo achou por bem dar esse direito ao voto para as mulheres. Ana e saindo do Japão e voltando para o Brasil, eu gostaria que você comentasse como foi o feminismo da primeira onda aqui no Brasil?
AH – Então, no século XIX tinha alguma movimentação, mas era individual, não tinha nada organizado. Então a gente tinha alguns nomes, algumas articulações de algumas pessoas. Talvez a que mais se destaca seja a Nísia Floresta, ela era professora. Ela se tornou conhecida porque ela fez a tradução de um texto daquela Mary Wollstonecraft, que eu mencionei no início, que se chama Reivindicação dos Direitos das Mulheres, e ela traduziu como Direitos das Mulheres e Injustiça dos homens, ou seja, ela fez uma criação criativa. Ela reescreveu. Então essa tradução criativa demonstra uma forma embrionária de uma perspectiva de gênero sendo introduzida porque as feministas lá do século XVIII, com viés iluminista, elas não tensionavam as relações entre homens e mulheres, elas simplesmente queriam ser incorporadas no projeto iluminista. A Nísia já dá esse outro tom, de que não. Os direitos das mulheres são o resultado das injustiças dos homens. Tem essa reapropriação interessante. E aí, depois passando para o século XX, desculpa, no século XIX ainda. A Céli Pinto, que é uma historiadora, ela tem um livro em que ela divide em três vertentes aqui, seria uma representada pela Bertha Lutz, que foi talvez o maior movimento, que ela chama de feminismo mais bem comportado, que reivindicava direitos para as mulheres, mas não necessariamente tocava nas relações de gênero, nas posições de poder dos homens. A segunda vertente seria um feminismo difuso, problematizado com mulheres cultas, jornalistas, professoras, que para além do voto elas tocavam em outras questões mais profundas, elas abordavam um campo mais vasto de questões, como sexualidade, divórcio, educação, dominação dos homens sobre mulheres. Dominação estou colocando entre aspas porque é um termo que a gente não usa mais muito hoje. E um terceiro que seria um movimento anarquista comunista, que é as mulheres trabalhadoras e intelectuais militantes dos movimentos de esquerda e talvez o maior nome desse movimento seja Maria Lacerda de Moura e ela escrevia sobre vários temas, inclusive amor livre que era algo bem novo pra época.
TT – Na verdade é um termo novo até nas datas de hoje, né Ana, tem muita gente que contesta, tem muita gente que comenta sobre essa questão do amor livre, mas e pra você, o que significa esse termo?
AH – Amor livre é quando você não se relaciona monogamicamente com alguém, quando você institui uma outra forma de se relacionar, que não parte do pacto da monogamia né. E enfim, em geral, eu não sei como a discussão era feita naquela época, mas hoje em dia quem discute amor livre, pensa como as relações afetivas-sexuais são muito determinadas, enfim, pelas normas de gênero que nos constituem. Então não dá para você pensar monogamia por exemplo, sem pensar no machismo, porque há cobranças distintas para homens e mulheres né, dentro de um relacionamento afetivo. Em geral quando homens traem, quase que é socialmente aceito. Ah, mas homem é assim mesmo né… homem faz isso… Então a ideia de amor livre seria construir relações mais iguais, relações afetivas sexuais mais iguais, mais democráticas, mais liberdade, enfim…
TT – E as questões familiares Ana, como divórcio e os direitos das mulheres no matrimônio, isso faz parte da primeira onda também?
AH – Sim, mas mais em alguns segmentos minoritários, digamos assim, porque na narrativa tradicional, a primeira onda ela é igual a sufrágio, assim né. A primeira onda é marcada por isso, por essa reivindicação das mulheres por direitos de voto, de serem votadas, reivindicando para entrar na cena pública né. E aí divórcio e as relações pessoais, começa a ser mais na segunda onda. Mas aqui, por exemplo tu vê né.. Por isso que digo.. Não sou eu que digo na verdade, por isso que a gente considera no feminismo que essa distinção em ondas pode ser problemática, porque aqui no livro da Céli Pinto sobre a história do feminismo no Brasil, ela mostra como as anarquistas e comunistas, enfim, as mulheres que estavam no espectro da esquerda, elas já tinham uma militância diferente das sufragistas, porque diferente das sufragistas em que a relação desigual de gênero não é colocada em questão, as anarquistas e comunistas fazem isso. Elas apontavam sem medo pra opressão feminina. Enquanto as sufragistas não. Elas não queriam muito provocar tensão. Elas não faziam essa conexão entre poder dos homens e supressão dos direitos das mulheres. Elas queriam ser simplesmente igualadas aos homens e isso vai mudando.
TT – Ah sim, vai mudando, mas tinha uma questão política também né Ana.. A questão do sufrágio, então elas não podiam entrar em conflito com os homens brancos porque afinal eles que iam dar o poder de voto a elas. Então, uma briga, um conflito entre mulheres brancas e homens brancos não era nada interessante para ela. Tudo que elas queriam é conquistar esse poder de voto e com isso elas conseguiriam uma atuação maior na política, inclusive para mudar algumas leis que as colocassem como inferiores aos homens, né, elas poderiam mudar algumas leis, elas tinham essa intenção. Só que daí, de novo né Ana, mais uma vez as mulheres negras não aparecem nessa história né.
AH – É, não, aqui a Djamila Ribeiro fez uma observação sobre essa divisão de ondas que eu achei interessante trazer, porque ela comenta que a história das mulheres negras, ela simplesmente não é considerada… quando a gente olha para a história do feminismo no Brasil. Se a gente olhar para o passado, as mulheres negras, elas vêm se organizando desde sempre né, desde a época em que eram escravizadas, elas se organizavam para vender produtos, para juntar dinheiro, para comprar alforria de pessoas que eram escravizadas e enfim, elas tinham as suas articulações né, então, a Djamila observa que já havia interseccionalidade na primeira e na segunda onda feminista, nos movimentos de mulheres negras. A questão é que aqui esses movimentos foram invisibilizados e não foram considerados parte do movimento feminista. Isso é interessante porque normalmente a gente considera a interseccionalidade uma característica da terceira onda, mas se a gente olhar pras mulheres negras, a gente vai ver que a interseccionalidade já estava lá, não com esse nome, mas ela já estava lá desde o primeiro.
TT – Bom Ana, foi riquíssima a sua contribuição até aqui com relação à primeira onda. Então vamos passar agora para segunda onda? Quais marcos mais te chamaram a atenção nas suas pesquisas e estudos?
AH – Então, a segunda onda é.. Considera-se que ela se inicia no pós segunda guerra, vai dos anos 60 até os anos 80, anos 90. Enfim, tem algumas autoras que consideram que vai até os anos 90 e algumas consideram que não, vai até os anos 80. Depende do lugar, da autora, do contexto histórico né. Mas aqui o que a gente vê na segunda onda é um deslocamento do que marcava a primeira. A primeira onda era marcada pela demanda das mulheres por direitos e pela entrada na vida pública né. Então, as mulheres se reuniam para reivindicar direitos de voto, de poder ter propriedade, de poder abrir conta em banco sozinha, enfim, coisas que pra gente hoje são muito óbvias, que há pouco tempo atrás ainda era motivo de disputa né. Então assim, elas se articulavam em torno de demandas sobre a vida pública. Não necessariamente elas colocavam em questão as relações pessoais e de poder entre homens e mulheres. E aí na segunda onda isso muda. Aqui na segunda onda que vai surgir o slogan do feminismo que é repetido até hoje: o pessoal é político. O que isso quer dizer? Quer dizer que a esfera da vida privada começa a ser vista como um lugar de, abre aspas, dominação patriarcal. Estou colocando entre aspas porque dominação patriarcal é um termo bem característico da segunda onda, hoje em dia ele já é colocado em questão. Então começa a ser discutida questões que não eram prioridade, ou que sequer eram pautas na primeira onda, tipo sexualidade, femília, direitos reprodutivos, mercado de trabalho, etc. A segunda onda ela é muito influenciada pela obra de Simone de Beauvoir. A Simone de Beauvoir publica o Segundo Sexo em 1949. Então é um pouco antes do que a gente considera a segunda onda, a gente considera que a segunda onda começa nos anos 60. Mas a gente pode entender que o Segundo Sexo foi livro da Simone de Beauvoir marca a virada da primeira pra segunda, porque ele dá outro tom. A primeira obra que vai se debruçar sobre essa relação da mulher com o homem e o que a Beauvoir diz, ela diz que a mulher é o Outro do homem, ou seja alguém que existe sempre em relação ao homem né, há uma relação de alteridade aí, mas ela não é simétrica, porque o homem é a medida e o centro de todas as coisas. E a mulher está sempre, sempre em relação a ele. Então aqui entra em cena as relações de gênero, mas não nesses termos, pois o termo gênero só vai ser cunhado com esse significado nos anos 60. Então a Beauvoir não fala em gênero, ela fala em sexo. E… mas aqui começa, aqui entra em cena as relações de gênero e começa a se desenhar a construção de gênero como construção social, que é expressa naquela frase célebre da Beauvoir “Não se nasce mulher, torna-se”. Ou seja, ser mulher não é um destino biológico né, é um processo cultural de construção. Eu vou ler aqui um trecho aqui, do livro dela. Bom… “o homem não teria ideia de escrever um livro…” enfim, neste trecho ela vai explicar o que ela quer dizer com a mulher é o outro do homem né. Vou começar. “O homem não teria ideia de escrever um livro sobre a situação singular que ocupa os machos na humanidade. Se quer definir-me sou obrigada inicialmente a declarar: Sou uma mulher. Essa verdade constitui o fundo sobre o qual se erguerá qualquer outra afirmação. O homem não começa nunca a se apresentar como um indivíduo de um determinado sexo, que seja homem é natural, é de maneira formal, nos registros, nos cartórios, ou nas declarações de identidade que as rubricas masculinas e femininas aparecem como simétricas. A relação dos dois sexos não é a de duas eletricidades, de dois pólos. O homem representa a um tempo o positivo e o neutro. A ponto de dizer-nos os homens para designar os seres humanos. A mulher aparece como negativo, de modo que toda determinação lhe é imputada como limitação, sem reciprocidade.
TT – Ana, essa questão que a Simone coloca da mulher ser o outro do homem é uma questão muito delicada, é uma questão importante pra gente conseguir entender essa história, entender bem o que ela quis dizer. Por isso gostaria que você explicasse um pouquinho melhor, com as suas palavras, o que significa isso? O que ela quis dizer com a mulher ser o outro do homem?
AH – Ela quer dizer que o homem é… o homem não é marcado pelo gênero né. Quando você fala, quando você imagina o sujeito universal né, do projeto liberal, você pensa num homem, homem branco.. Enfim, tem outros atravessamentos que a gente pode considerar aí: um homem branco, com propriedades né, adulto. Não é nenhum velho, não é nenhuma criança. Enfim, e a mulher não. A mulher é marcada pelo gênero. Então por isso que ela diz ali, quando uma mulher começa a se definir. Ela diz né, “Se quero me definir, sou obrigada a começar com – Sou uma mulher.” Já o homem não. Presume-se que o sujeito universal é um homem. Isso por exemplo aparece muito claramente na Constituição de 1900, desculpa, 1891 do Brasil. Que vai instituir quem pode votar né, aí lá diz pode votar tais e tais pessoas, não lembro quais eram as determinações, mas não diz mulheres não podem votar. Simplesmente não fala em mulheres. Por que as mulheres simplesmente não aparecem? Porque simplesmente não se cogitava que mulheres pudessem votar. Era tão absurdo mulher e sujeito de direitos, era uma contradição de termos né… então nesse sentido assim né, tanto nos campos dos direitos, como no campo existencial, a mulher ela é entendida como o outro do homem. É isso que a Beauvoir diz. E aí esse livro dela, ele realmente dá o tom da segunda onda do feminismo, né, a forma como a obra dela vai ser apropriada nos anos 60, sobretudo nos Estados Unidos, pelas mulheres estadunidenses, vai ser muito central para política feminista, né. E se a gente pensar nos anos 60, havia toda uma efervescência política cultural acontecendo tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, então o feminismo foi encontrando seus caminhos por aí né. Houve também uma outra mudança na sociedade estadunidense durante esse período que… ali como na época da revolução industrial houve uma mudança na forma como as relações econômicas estavam organizadas de acordo com o gênero, agora no século XX, depois da segunda guerra mundial, as mulheres começaram a ser dispensadas dos trabalhos que elas tinham conquistado na ausência dos homens, para ceder lugar para os homens que voltavam da guerra. Então durante a guerra elas avançaram em alguns pontos, trabalhavam e tal, e daí quando eles voltaram, quando a guerra acabou, quando enfim, quando as coisas estavam se ajeitando, elas começam a ser empurradas para o lar de novo e aí a gente vê de novo uma nova onda de valores de feminilidade domesticada sendo criados e difundidos nos Estados Unidos. Agora muito associados com o consumo. Então tinha essa ideia de que o lugar da mulher era em casa, na cozinha, cuidando do marido e dos filhos e comprando eletrodomésticos. Porque essa era a fase do capitalismo que a gente estava.
TT – Não só isso né Ana, teve uma fala da Beauvoir que fala que a França perdeu muitos homens, cerca de 600 mil e aí nesse final da guerra, o que o estado deu como solução foi o nascimento, incentivar o nascimento de 10 milhões de bebês em 10 anos. Então as mulheres, além de estarem ali como donas de casa, elas tinham que ser reprodutoras. Era uma fábrica de gerar bebê! E aí esse foi o movimento, famoso movimento chamado de baby boom. E o que aconteceu? As mulheres se tornaram não só objetos, mas também fábricas de reprodução. Muito triste isso na nossa história. Isso tirou bastante a liberdade delas, tirou a liberdade de trabalho. As que não queriam ter filhos eram ridiculamente excluídas da sociedade. Então foi uma época triste para nós mulheres né.
AH – É, porque vai ter uma equivalência entre mulher e mãe. Uma equivalência entre mulher e mãe e uma inferiorização da mulher né, porque não é como se houvesse um grande status em ficar em casa cuidando dos filhos e cuidando da casa né. A mulher acaba na verdade.. Isso é o que daí a Betty Friedan, que é outro nome da segunda onda, que é uma americana, ela chama de mística feminina, que é um outro conceito muito marcadamente da segunda onda e ela critica esse modelo de dona de casa que foi imposto sobre as mulheres né, que entendia… o que seria mística feminina? Seria o entendimento de que a missão das mulheres é a realização da sua própria feminilidade que é servir o homem e a família, cuidar da casa. Entre aspas, aceitar a própria natureza subserviente, enfim… esse livro, é um livro né que a Betty Friedan escreveu sobre a mística feminina, é um livro que ela escreveu muito pensando nas mulheres brancas de classe média dos Estados Unidos, então não é um livro representativo digamos assim, né, ele acabou se convertendo num clássico do feminismo da segunda onda. Mas é importante a gente ter em mente as limitações dele né, é um livro sobre mulheres de classe média dos Estados Unidos, mulheres brancas.
TT – É uma época muito marcada mesmo pelo consumo né. É uma época que traz à mente essas imagens das mulheres na cozinha, com os aparelhos eletrodomésticos, os homens lendo jornal, as crianças brincando, então sempre as mulheres nas tarefas domésticas.
AH – Sim, é… é bem aí né, sempre atrelado a muito consumo. Tem muitas propagandas de eletrodomésticos sempre visando o público mulheres donas de casa. Mas aí de novo, essa história é dos Estados Unidos. Aqui no Brasil, o que estava acontecendo durante essa época era muito distinto. Porque se a gente pensa nos Estados Unidos e Europa nos anos 60, onde tinha uma grande efervescência política, aconteceu em 1968, a guerra do Vietnã e todas as manifestações contra a guerra do Vietnã, o movimento hippie, o movimento beatnik, enfim. Tinha toda uma transformação cultural de valores acontecendo. E no Brasil a gente teve o golpe de 64 e depois 68, com AI-5 com o reconhecimento da ditadura. Mas ainda assim surge o novo movimento feminista digamos assim né, o que a gente poderia chamar de segunda onda. Um pouco distinto do que acontecia lá fora. Nas décadas de 70 e 80, enfim, a gente estava em ditadura e isso condicionava qualquer articulação e qualquer movimentação política que pudesse ser feita. Então as feministas não podiam militar tão livremente. Então o que acontecia nessa época? Várias grupos de mulheres surgiram muito no modelo estadunidense e europeu, formado por mulheres cultas, que viajavam, estudavam fora e voltavam para o Brasil e eram grupos fechados de reflexão, de discussão. Não eram grupos de militância precisamente. Eram grupos que aconteciam dentro das casas, não em espaço público, nos limites da ditadura. E aí, se o feminismo era visto como perigoso pela ditadura, pelos militares, ele também não era bem vista pela esquerda, pela resistência à ditadura em geral né. Os homens da esquerda eram muito enfim… a esquerda naquela época era marcadamente marxista e eles enxergavam o feminismo como um… não o feminismo, mas o problema de gênero, o problema das mulheres, como um problema burguês, um problema que desviava a atenção dos verdadeiros problemas que eram o capitalismo e a ditadura. Pra eles o feminismo era uma luta menor que ameaçava a unidade, a unidade dos trabalhadores né. Então tinha uma invisibilização dentro da própria esquerda né, das questões de gênero. Por exemplo, se você pegar o Pasquim, que é aquele jornal, o mais famoso de resistência à ditadura, há várias manifestações machistas, homofóbicas, enfim, ridicularizando o movimento feminista. Era uma coisa bem comum na época. Enfim, à medida que a gente vai avançado ali nos anos 70, 1975 é um marco porque foi o ano internacional da mulher, decretado pela ONU, que deu início ao que se chamou depois de década da mulher. E aí a questão de gênero ganhou um outro status no mundo, porque passou a ser uma preocupação no mundo, com vários projetos financiados por fundações internacionais. Mas era diferente, porque assim, aqui nisso que a gente consideraria a segunda onda, enquanto por exemplo, nos Estados Unidos, as mulheres e as mulheres negras, cada vez mais elas colocavam as suas especificidades em debates público, aqui as feministas ainda estavam presas às agendas ou do movimento liberal contra a ditadura em defesa da democracia ou então à agenda do movimento marxista, que era do proletariado contra a burguesia né. Ambos contra a ditadura, mas com linhas distintas né. Então tinha uma dificuldade de colocar as questões de gênero em pauta, porque havia uma hegemonia ali das agendas liberal e marxista.
TT – Ana, chegamos ao final deste episódio. Quero mais uma vez agradecer a sua presença, sua contribuição foi riquíssima. Aos ouvintes que nos acompanham, o próximo episódio será sobre as ondas 3 e 4, também com a Ana Hining. Ana, super obrigada pela sua participação no podcast Papo Diversidade.
AH – Obrigada também Tati, obrigada pelo convite, pelo espaço. Também gosto muito de estar aqui conversando.