Transcrição EPISÓDIO 4 – Ondas 3 e 4 do feminismo
TT – Tatiana Takimoto
AH – Ana Hining
TT – Olá caros e caras ouvintes, meu nome é Tatiana Takimoto e esse é o canal papo Diversidade, o podcast da Corali. Mais uma vez está aqui conosco a Ana Hining, Nossa convidada para falar sobre as ondas do feminismo. A Ana é psicóloga, com mestrado em psicologia, e pesquisadora das temáticas da sexualidade e do feminismo, e esse já é o terceiro episódio com participação da Ana. No último falamos sobre a primeira e a segunda ondas do feminismo, e agora eu trago a Ana para trazer mais conhecimento para vocês sobre a terceira e a quarta ondas. Tudo bem Ana? Bem-vinda novamente ao nosso canal.
AH: Oi Tati tudo bem? Obrigada pelo convite de novo, e enfim vamos continuar a conversa.
TT: Vamos continuar. Então hoje vamos falar sobre a terceira e a quarta ondas do feminismo. E na mesma dinâmica do último episódio, dando continuidade, eu gostaria que você comentasse Ana sobre os principais marcos, sabendo que existem as controvérsias sobre as divisões das ondas, sabendo que depende muito da visão das diferentes autoras e contexto histórico. Gostaria que você trouxesse sua visão e seu conhecimento a respeito da terceira onda.
AH: É, então, enquanto terceira onda a maioria das autoras situam ela ou nos anos 80 ou nos anos 90, ou na virada dos 80 para os 90, e o que marca a terceira onda são as críticas feitas à segunda onda. A universalização da mulher, da noção de mulher, que foi um produto da segunda onda, começa ser colocada em xeque, porque essa universalização produz exclusões. Então muitas feministas, lésbicas, negras, trans, do sul global, periféricas, elas começam a dirigir várias críticas na forma como o feminismo vinha se articulando. No sentido de mostrar que não existe a mulher, e que quando a gente presume a mulher no singular, quando a gente produz, quando a gente presume esse coletivo uniforme a gente acaba excluindo diversos grupos né, que não se encaixam nesses critérios dominantes que foram definidos para gente entender o que que é a mulher.
TT: Bem bacana essa noção de universalização da mulher que você trouxe Ana. E o que você chamou agora de coletivo uniforme, achei bem bacana. E por isso então que hoje temos que tomar esse cuidado né, de trabalhar sempre feminismo no plural. Então a gente trabalha mais feminismos, isso foi um ensinamento que você trouxe lá no primeiro episódio, a gente fala feminismos no plural e não feminismo no singular.
AH: Isso, aí na terceira onda começa a falar em feminismos, até porque nenhum tem uma pretensão de construir uma simonia sobre o outro, então não é exatamente uma disputa de poder pela narrativa hegemônica, mas uma coexistência mesmo com diversos segmentos, diversos focos. Enfim, essa seria uma das características da terceira onda. Uma outra característica seria, alguns conceitos muito chaves da segunda onda começam a ser revistos à luz do que a gente chama de pós-estruturalismo na filosofia. Então as noções de identidade e diferenças elas são revistas. A noção de gênero também muito cara a segunda onda. As feministas começam a explorar os limites da noção de gênero, e mostrar que a depender desse uso que se faça dessa noção pode ser que ela reforce uma concepção essencialista. Então é isso, o que marca a terceira onda essa distinção teórica, esse alargamento do campo teórico do feminismo. Então há deslocamentos aí né, que a gente vê, que antes entravam muito nos estudos da mulher, aí depois eles vão se tornando estudo de gênero, também foram estudos da família. Cada vez mais eles não se tornando estudos da sexualidade. Enfim, é sempre em um esforço de se desfazer de qualquer essencialismo, que o termo gênero possa carregar.
TT: E nesses estudos Ana que vão além da sexualidade e do gênero, esses estudos que marcam essa onda, a gente poderia afirmar que é dali que nasce a interseccionalidade, esse termo interseccionalidade?
AH: Então, eu encontrei autoras que colocam esse termo interseccionalidade na segunda e encontrei autoras que colocam na terceira. Mas, por outro lado, também encontrei várias feministas negras que dizem “bom, embora o termo interseccionalidade não fosse usado antes, ele já existia ele já era trabalhado”. A Djamila Ribeiro fala isso, por exemplo. Porque se você vê lá na primeira onda, se você buscar o que que as mulheres negras, como as mulheres negras estavam se articulando, o que que elas diziam quando ela se manifestavam, você vai ver que elas trabalham a interseccionalidade de alguma forma. Ainda que o termo não estivesse lá. Eu tenho um trecho aqui que eu posso ler de repente, que é uma fala bem famosa dá Sojourner Truth, que foi uma mulher negra escravizada nos Estados Unidos, e em fim, ela é um nome da primeira onda. Mas ela tem um discurso que ela fez em uma convenção de mulheres em 1951 que é um discurso muito famoso e muito ecoado hoje em dia ainda quando a gente fala de interseccionalidade, porque é um discurso em que ela fala não sou eu uma mulher? Então eu vou ler um trechinho aqui onde a gente pode ver como a interseccionalidade já está lá.
TT: Nossa Ana, eu fico bem feliz que você traz esse trecho para a gente porque é um trecho que eu já conheço e eu acho que faz total sentido, eu amo essa fala dela. Então por favor não ia para a gente.
AH: “Arei a terra, plantei, enchi os celeiros, E nenhum homem poderia se igualar a mim. Não sou eu uma mulher? Eu podia trabalhar tanto e comer tanto quanto um homem, quando eu conseguir a comida. E eu aguentava o chicote da mesma forma. Não sou uma mulher? Dei à luz a 13 crianças e vi a maioria ser vendida como escrava e quando chorei no meu sofrimento de mãe ninguém, exceto Jesus me ouviu. Não sou eu uma mulher?”
Então o que que ela quer dizer né, porque ela era uma mulher negra em meio a muitas mulheres brancas. E, como havia aquela ideologia da feminilidade de que a mulher é um ser delicado, que a mulher pertence a casa, de que a mulher é sensível, ela precisa de cuidados, essa ideologia nunca se aplicou as mulheres negras. Então isso sempre dificultou a identificação das mulheres negras com esse “a mulher” que as feministas brancas produziram. Por exemplo, quando a gente volta para aquele livro que eu mencionei da Betty Friedan, sobre a mística feminina, ela fala isso que a mística feminina seria isso, a ideologia de que a mulher ela se realiza na sua feminilidade, sendo mãe e esposa. Mas isso as mulheres negras nunca se viram nesse estereótipo de mulher. Porque você vê, lá quando a Sojourner Truth está falando “não sou eu uma mulher? Eu arei a terra, eu trabalhei, eu fui chicoteada tanto quanto os homens”, então ela diz que esse tratamento da mística feminina nunca foi estendido a ela. Isso foi sempre reservado às mulheres brancas. Então ela está apontando aí que a raça faz com que gênero seja apropriado de uma maneira diferente. O fato de ela ser uma mulher negra faz com que ela experience a “mulheridade” de uma maneira distinta de uma mulher branca. O que aproxima ela dos homens negros por um lado mas também aproxima ela das mulheres brancas. Então isso é a interseccionalidade né. Como esses vetores, esses marcadores sociais eles se articulam e eles produzem formas particulares de experienciar as opressões no mundo.
TT: Sensacional, sensacional. Como eu falei assim ó, eu amo esse trecho da Sojourner Truth que você trouxe, eu amo. Porque, só complementando essa convenção que ela participou foi uma convenção nacional pelos direitos das mulheres né. Então foi na época do sufrágio. E foi uma época em que as mulheres brancas estavam lutando pelo sufrágio, e ela era a única mulher negra presente. E tinham homens presentes também, porque afinal eles estavam ali para verificar se as mulheres tinham direito ao voto ou não. E aí teve um homem que no meio dessa convenção falou que achava ridículo que as mulheres estivessem ali desejando o direito ao voto sendo que elas nem conseguiam pular uma poça sozinhas ou embarcar em uma carruagem sozinhas, sem ajuda de um homem. Então foi aí que a Sojourner se levantou e falou para plateia para todos os que estavam presentes, “não sou eu mulher?” E aí ela defendeu as mulheres, ela era a única negra defendendo as mulheres brancas, que estavam ali pedindo o direito ao voto. Então ela falou: “Poxa não sou eu uma mulher, se eu trabalho na lavoura, eu sou açoitada, sou chicoteados da mesma forma que um homem, tenho a mesma força de um homem”. Então ela se colocou como um sexo forte né, digamos assim. Ela, derrubou o argumento masculino de que a mulher é um sexo frágil. Então achei sensacional, porque ela além de ficar do lado das mulheres ela trouxe essa força, ela apresentou essa força das mulheres negras. Eu achei sensacional, ela saiu dali como a heroína do dia, salvou o evento das mulheres, salvou convenção.
Bom Ana, agora eu gostaria de avançar um pouco mais, eu gostaria que você trouxesse um pouquinho do Brasil, da história do Brasil nessa época da terceira onda.
AH: Então no Brasil né, é complicado a gente dividir em segunda terceira onda, assim, não é muito claro né. Tem um livro pelo qual eu estou me orientando para fazer a fala aqui que é o da Céli Pinto, em que ela não divide por ondas, ela divide por períodos no Brasil. Mas se a gente pensar no tempo histórico, o que que estava acontecendo no Brasil na década de 80 e 90, que é o que a gente costuma considerar como a terceira onda, então é o período da redemocratização. Se na segunda onda, no caso período da ditadura, as mulheres, as feministas né, se organizavam mais em casa, em grupos reflexivos, e não conseguiam muito se articular publicamente. No período da redemocratização aí isso começa a mudar né. Aí a gente vê que entre as feministas há uma divisão entre aquelas que queriam se institucionalizar, ou seja aquelas que queriam entrar no aparato estatal, e aquelas que preferiam uma atuação mais autônoma. E aí o feminismo acaba assumindo três formas nesse período de redemocratização. Uma seria essa de mulheres que ocupam espaço no plano institucional, sobretudo nos conselhos da mulher e nas delegacias da mulher. Uma segunda forma seria a presença de mulheres nos cargos eletivos. E uma terceira forma seria formas alternativas de participação política, e formas autônomas. Um evento importante nessa época é a fundação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher em 1985. A ideia desse conselho, de fundar esse conselho se originou na época das Diretas Já, e embora esse órgão fosse vinculado ao Ministério da Justiça, a presidenta dele tinham status de ministra. Então foi bem importante né. Esse conselho atua junto da constituinte, e talvez ele tenha produzido um dos documentos mais importantes do feminismo contemporâneo, que foi um documento chamado Carta das Mulheres. E esse documento ele tinha duas partes né. Na primeira parte ele defendia, tinha demandas gerais da sociedade, na segunda parte tinham demandas específicas das mulheres né. Aí na primeira parte ele tinha uma agenda bem Progressista, o que é bem interessante. Elas defendiam o Sistema Único de Saúde, um ensino público e gratuito, a justiça social, a reforma agrária e autonomia sindical. E aí na segunda parte, em que abordava temas específicos das mulheres, havia reivindicações quanto à trabalho, saúde, direitos de propriedade, conjugalidade. Também, embora não defendesse explicitamente a legalização do aborto elas postulavam que deveria ser garantido à mulher o direito de conhecer e decidir sobre o seu próprio corpo. Então já havia aí um aceno né, à essa discussão, de legalização do aborto. Aí na terceira onda a gente vê no Brasil também a consolidação de um feminismo acadêmico, algo que acontece na segunda onda nos Estados Unidos e na Europa. Nessa época já havia uma distinção entre teoria feminista e um feminismo propriamente acadêmico e os movimentos sociais, embora eles sempre estejam em articulação.
TT: Bacana essa questão sobre o feminismo acadêmico Ana, que você trouxe agora. Então foi nessa época que começaram os estudos mais aprofundados sobre o feminismo e a teoria feminista, ou melhor dizendo os estudos do feminismo como teoria né.
AH: O feminismo se consolida como teoria por quê há uma distinção. Uma coisa é movimento social né, que enfim, são as pessoas que se articulam politicamente pensam em estratégias, em ações, em como de repente entrar no aparelho estatal ou não, se vai fazer uma ação autônoma de pressão ao estado, ou de mobilizar a sociedade, enfim um movimento social. E há também uma teoria feminista, que existe para além desse movimento social. É claro que teoria e prática sempre andam juntas, uma depende da outra, mas há algo que a gente chama de teoria feminista, ou algumas autoras chamam de filosofia política do feminismo, ou algumas dizem que existe uma epistemologia feminista, enfim, os temas variam né. Então o feminismo aqui no Brasil, depois da redemocratização ele se consolida como um campo acadêmico, como uma área de conhecimento, de produção de conhecimento. Isso já tinha acontecido nos Estados Unidos e na Europa na segunda onda. E ainda aqui, diferentemente da Europa e dos Estados Unidos, esses estudos sobre a mulher, sobre gênero, eles não se institucionalizaram com tanta força nas universidades, nos programas de graduação e de pós. Então, não havia, e não há até hoje, tantos quanto há lá fora. Por exemplo programas de pós-graduação né, que aqui a gente tem programa de pós-graduação que abarcam a questão de gênero, mas não especificamente sobre isso, que dizer, a gente tem mas tem poucos. Então aqui na UFSC, onde eu me informei, a gente tem um programa de pós-graduação, aí tem a área de psicologia social e cultura e ali dentro há os estudos de gênero e feministas. Aí é diferente, por exemplo nos Estados Unidos e na Europa é muito comum você ver uma gradação inteira sobre estudos de gênero, ou um programa de pós em inteiro, ou um centro inteiro sobre estudos de gênero e feministas. Aqui a gente depende muito de núcleos, núcleos que vão sendo criados e professores e professoras que acabam encampando a discussão né. Mas a coisa não se institucionalizou tanto quanto nos Estados Unidos e na Europa. Apesar disso eu acho que hoje o Brasil se destaca muito na produção de conhecimento sobre gênero e feminismo.
TT: Verdade Ana. Mas apesar dessa diferença entre os Estados Unidos e o Brasil, e a Europa, Aqui na UFSC em Florianópolis, a gente está muito bem né Ana. Eu tenho visto muitas produções interessantes, apesar de que eu sou nova nesta área de estudo mais aprofundado do feminismo. Mas do que eu tenho visto estamos bem.
AH: Uhum. A gente tem pesquisadores muito bons, a gente tem uma produção de conhecimento muito boa e reconhecida lá fora.
TT: Sim, mas o nosso estudo a nossa produção científica tem uma influência forte americana né, não podemos dizer que genuinamente brasileira.
AH: Nunca é né. Não tem como tirar tudo isso da colonização, do contexto de colonização assim né. De colonização cultural eu digo assim, dessa colonização que perdura até hoje né. Então sim, assim, tanto que até hoje se você vê, grande parte das autoras com as quais a gente trabalha são autoras do norte global né. Então aí, claro, a gente tem várias discussões de decolonialidade, de pós colonialidade que vão questionar isso né. Porque que a gente não consegue produzir o nosso próprio feminismo? Eu acho que a gente está produzindo sim, eu acho que a gente ainda tem uma grande interferência, uma grande hegemonia do Norte Global, mas a gente vem cada vez mais questionado. E também cada vez que a gente se apropria de uma teoria do norte global, isso não quer dizer que a gente se apropria sem críticas, sem modulações né. Por isso que a ideia de antropofagia é muito interessante né, a gente na verdade pega nos serve e faz disso outra coisa, que faz sentido para onde a gente vive.
TT: Ana, então entende-se que a terceira onda iniciou pelos anos 80, tivemos o período da redemocratização. E como se deu a continuidade do feminismo? Principalmente na virada do milênio.
AH: Tem mais uma parte assim, da terceira onda no Brasil, que haveria esse momento da redemocratização, mas se a gente pensar que a terceira onda começa a li nos anos 80/90 e vem até hoje né, isso compreende também a virada do milênio. E aí há algumas modificações nos feminismo no Brasil, mas vamos considerar que isso é terceira onda né. Então a virada do milênio, ela começa com a questão né: “O feminismo morreu?”, “Acabou o feminismo?”. Então realmente parece que houve um desmerecimento do movimento em comparação à o período anterior, mas isso não quer dizer que ele acabou né. Quer dizer que talvez a gente tenha uma nova forma de fazer a política feminista acontecer. Então o período da virada do milênio a gente vê menores e movimentações feministas mas um feminismo mais difuso pela sociedade. A gente vê pequenas mudanças e avanços, maiores aceitação da sociedade talvez em espaços onde o feminismo não era presente antes, ou as mulheres não eram bem aceitas antes. E definitivamente uma maior inserção do feminismo no aparelho estatal, e um fenômeno que algumas autoras chamam de “onguização” do feminismo. Ou seja a criação de muitas ONGs, os movimentos sociais eles começam a deslocar o trabalho para as ONGs. Insere no aparelho estatal e a gente vê essa “onguização” do feminismo. A gente vê a criação de muitas ONGs e financiadas sobretudo por órgãos internacionais, fundações nacionais, em alguns casos pelo próprio governo. E isso é um pouco problemático, porque é uma espécie de terceirização da responsabilidade né. O governo ao invés de assumir o trabalho por exemplo de combate à violência contra mulher, ou de trabalhar com a saúde das prostitutas, ao invés de fazer ele isso, ele terceiriza essa função para uma ONG para qual ele repassa um dinheiro né. E a “onguização” do feminismo também acontece a partir de uma certa segmentação por extratos identitários. E aí a gente vai ver as ONGs de mulheres negras, as ONGs das prostitutas, as ONGs das mulheres com HIV, enfim são segmentos. Mas isso também não é só um fenômeno específico dessa “onguização”, tem a ver também com a terceira onda em que a gente já vê essa segmentação né, por identidades né.
TT: É bem interessante essa questão das ONGs. Então é na virada do milênio que nascem as ONGs que assumem esse papel de mudanças na sociedade, além da representatividade do diversos grupos do feminismo né. E então isso traz novamente a questão da interseccionalidade e dos diferentes públicos.
AN: Sim. E o que que a gente vê então, os feminismos surgindo, a pluralidade de vozes feministas, e é isso que marca a terceira onda.
TT: Legal Ana vamos então para quarta onda? Quais são os principais marcos assim na sua visão?
AH: Então a quarta onda na verdade não é consenso que ela exista né (risos). Assim, nem me parece uma grande preocupação do campo feminista em definir se a gente está ou não na quarta onda né. Até porque a quarta onda ela surge, se ela surge, ela surge em um período em que a própria noção de onda, como eu falei lá no outro podcast sobre a primeira onda, a própria noção de onda ela começa a ser problematizada. Não é consenso e, enfim, algumas reivindicam essa quarta onda. E há algumas razões para isso. E me parece que há duas narrativas sobre a quarta onda. Uma narrativa é pela perspectiva das redes sociais, de como as redes sociais renovaram as nossas formas de se organizar e se articular, de uma forma mais horizontalizada e espontânea, sem lideranças. E a outra entende que a quarta onda é caracterizada pelas novas movimentações feministas do sul global, sobretudo aqui na América Latina. Essas duas narrativas também não são totalmente excludentes. Se você for pesquisar artigos e textos você vê que tem essas duas narrativas. Nessa perspectiva de que a quarta onda seria uma onda latino-americana, a Cecília Palmeira, fundadora Ni Una Menos que é um movimento argentino muito forte, movimento feminista argentino muito forte, ela diz isso né, que a quarta onda do feminismo é um movimento tipicamente latino-americano. Então essa quarta seria uma nova moldura teórica para o feminismo, um pouco mais transnacional, em que haveria uma radicalização da luta anticapitalista na, pelas mulheres do sul global. Então há esse encontro também do feminismo com outros movimentos, outros movimentos sociais. Enfim, se antes o feminismo tinham espaço mas circunscrito, que era um espaço de articulação propriamente feminista, agora ele permeia outras movimentos sociais e espaços. Então você vai ver, por exemplo quando tem manifestações, não sei dos secundaristas aqui no Brasil, você via que as meninas jovens feministas estavam lá, se articulando junto. Não necessariamente aquilo era um movimento feminista, aquilo era um movimento de secundaristas, mas havia um viés feminista ali. Então é nesse sentido que dizem né que a quarta onda é mais descentralizada, mais horizontalizada, sem pontos de liderança, de referência assim.
TT: Legal Ana, essa forma descentralizada, que você diz, sem lideranças é muito interessante para a gente conseguir alcançar mais mulheres né. Na verdade eu nem vejo tanto assim com poucas lideranças, ou sem lideranças, eu vejo com muitas lideranças espalhadas por aí, e distribuídas pelo mundo. Então são mais mulheres puxando por outras mulheres. E daí entram as redes sociais que disseminam esses movimentos, as hashtags “sejam todos feministas”, “me too”, para incentivar as mulheres a compartilharem as suas experiências de abuso, de assédio sexual né. E agora em época de pandemia eu vejo as redes sociais como um instrumento super importante, para que pare essa violência, para que as pessoas percebam e tomem conhecimento de que isso existe.
AH: Sim. É então, é daí tem essa outra perspectiva né, de que as redes sociais elas renovaram as formas como a gente se organiza, e aí tem essas hashtags que de fato mobilizam e que dão visibilidade para várias experiências né.
TT: E funciona né, funcionam de fato. As redes sociais elas têm um poder gigante para essa disseminação, agora então com essa onda de violência que está tendo, eu acho que isso funciona bastante. O que que você acha?
AH: Ah sim, eu acho que sim. Porque eu acho que muitas mulheres que talvez não teriam contato com o feminismo acabam tendo, pela internet né. Então a internet ela acaba propiciando que a gente se encontre à despeito da distância, à despeito… Agora na pandemia isso é muito claro né. Por exemplo a gente estaria muito mais distante um dos outros se a gente não tivesse a internet para se comunicar. Então por exemplo eu que estudei o transfeminismo né, o transfeminismo ele tem um viés virtual muito forte. Então ela se organizam em grupos de discussão, tem blog, os textos delas que elas publicam tem um grande alcance. Isso é muito interessante, porque por mais que a gente possa fazer várias discussões, claro nem todo mundo tem acesso à internet, e por mais que tenha não é fácil de utilizar para todo mundo, porque nem todo mundo foi ensinado a usar a internet, mas eu acho que de uma certa maneira democratiza o acesso ao conhecimento né. E acaba proporcionando com que o feminismo consiga alcançar mais pessoas, e isso é muito interessante.
TT: É Ana, essa questão da tecnologia realmente exclui alguns públicos né, e isso é uma questão bem importante para gente trazer, principalmente as mulheres de baixa renda, as com mais idade, que tem dificuldade com tecnologia, mas que ainda assim sofrem. A gente tem que olhar para esses públicos e tomar cuidado com isso e procurar meios além da internet de fazer a informação chegar até elas né.
AH: É, isso tudo também não significa prescindir das ruas e do espaço público, eu acho que é só mais uma plataforma de ação. Onde as pessoas podem se encontrar, onde as pessoas podem trocar experiências, podem contar o que já aconteceu com elas. E realmente é muito interessante quando você vê que você não é a única né, aquilo já aconteceu com outras, você não precisa se sentir culpada, dependendo do que aconteceu com você. Enfim, isso tem um efeito psicossocial muito importante também.
TT: Ana, passamos então pela primeira, pela segunda, pela terceira e quarta ondas, e agora fazendo um balanço né, o que que você acha que que a gente ganhou, os nossos aprendizados as nossas conquistas, onde que a gente avançou, e o que que temos ainda para conquistar pela frente?
AH: É difícil fazer esse balanço né, porque, até porque depende muito de cada contexto social, de cada cultura em que cada pessoa vive né. Embora feminismo seja um movimento mundial, cada realidade nos apresenta diferentes desafios. Me parece que sim, que a gente avançou, se a gente for pensar por exemplo nas demandas das mulheres da primeira onda, que era sobretudo o voto, bom então a gente já avançou. Pelo menos a gente volta hoje. Acho que sim a gente tem liberdade de se articular politicamente, a gente pode se candidatar, a gente pode votar esse votada. Mas isso não é tudo né, há uma micropolítica que me parece que é mais difícil de ser superada né, um machismo mais difuso na cultura, que é muito difícil né. Então a gente vê poucos avanços com relação a violência contra mulher e caso de estupro né. Desde que se fala nisso a gente não vê uma redução expressiva, e talvez veja inclusive um aumento. Porque a diferença é que as mulheres passam a denunciar mais. Então é muito difícil pensar o quanto a gente avançou. Para mim né, eu acho muito difícil fazer essa avaliação né, porque há pontos em que a gente inegavelmente avançou, mais a pontos em que parece que a coisa nunca anda. Enfim, me parece que tem muita coisa ainda para avançar né, a divisão das tarefas do lar, a gente ainda… as mulheres são super sobrecarregadas, trabalham fora de casa e trabalham em casa, e não tem o trabalho de casa reconhecido como trabalho. Então por isso que se fala muito isso né, “o que vocês chamam de amor, na verdade é trabalho não remunerado”, porque a gente não faz por amor. É trabalho não remunerado, não reconhecido. Então acho que há muitas coisas ainda a serem transformados na sociedade, e que eu acho que a conclusão de tudo isso pode ser que o feminismo ainda é imprescindível, ainda é um movimento muito essencial para gente.
TT: Com certeza. E agora quando você fala sobre o trabalho do lar, me vem à mente que quantas mulheres estavam sozinhas cada uma em sua casa, não existia muito movimento contra a opressão. Elas ficavam sozinhas não conseguiram se articular. Mas depois que começaram a se organizar em grupos que aí sim elas foram percebendo que sofriam as opressões e que precisavam lutar contra elas. Então o movimento coletivo ele foi importante desde a primeira onda. Concorda que foi essa organização delas que fez com que com que elas começassem realmente a se articular na política, e enfim conquistar os seus direitos?
AH: Sim, com certeza. A organização coletiva é essencial para qualquer avanço político né. Com certeza poder se encontrar, poder formar um coletivo né, faz toda diferença né. Inclusive daí vem aquele slogan feminista que lugar de mulher é onde ela quiser. Se ela quiser ficar no lar beleza, mas se ela quiser sair na rua ela tem que poder ir também. E ficar no lar não pode ser sinônimo de inferioridade. Então acho muito legal esse “lugar de mulher é onde ela quiser”. É na política, é na cozinha se ela quiser, enfim há na empresa, na tecnologia.
TT: Sim, é na política, na tecnologia, é onde ela quiser. Então Ana a gente passou pelas quatro ondas,, temos muito conhecimento, que você trouxe para gente, e muitos aprendizados. E qual seria o seu recado final agora né, que o nosso episódio está terminando. Queria que você deixasse o seu recado final para as mulheres e para os homens também né.
AH: O meu recado final acho que seria talvez retomar a problematização inicial né, de que enfim, essa periodização em ondas ela pode nos ajudar mas ela pode também produzir apagamentos né. Então é interessante a gente olhar para a história do feminismo e olhar para aquilo que não aparece, para aquelas que não são visibilizadas como feministas né. Então para gente não esquecer que sempre houve movimentos minoritários dentro do feminismo, de mulheres negras e articulando, de mulheres periféricas, de mulheres trabalhadoras e pobres. Então acho que a gente tem que buscar nesses momentos mais contra hegemônicos né, buscar inspiração para como agente se articula hoje em dia.
TT: Show Ana, sensacional! Então assim a gente encerra, esses capítulos sobre as ondas do feminismo. Iniciamos no último episódio com as ondas 1 e 2 e estamos finalizando agora com as ondas 3 e 4. Eu agradeço demais a sua presença aqui com a gente, eu espero ver você em outros episódios do nosso podcast. Muito obrigada, e sensacional a sua presença!
AH: Obrigada pelo convite também, foi muito bom conversar com sobre as ondas.