A mídia tem comunicado dados alarmantes sobre violência contra mulheres durante a pandemia do novo coronavírus. De acordo com a Diretora da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, são 90 países em confinamento, com quatro bilhões de pessoas se abrigando em casa contra o COVID-19. Contudo, para muitas mulheres a violência enfrentada em casa pode ser outro perigo mortal. Na fala de Mlambo-Ngcuka, mesmo antes do COVID-19, a violência doméstica já era uma das maiores violações dos direitos humanos. Nos 12 meses anteriores, em todo o mundo foram mais de 240 milhões de mulheres e meninas, de 15 a 49 anos, submetidas à violência sexual ou física por um parceiro íntimo. Nos últimos meses, as linhas de ajuda e abrigos para violência doméstica estão relatando pedidos crescentes de apoio. São Paulo teve um aumento de 30% dos casos relatados. Brasil, que já apresentava taxas superiores à média mundial de violência doméstica e feminicídio, hoje relata 1 morte a cada 7 horas. Esse dado, entretanto, é subnotificado. A ONU Mulheres enfatiza que somente 10% dos casos vêm à tona, e as circunstâncias atuais tornam os processos ainda mais difíceis, pois as mulheres ficam sem acesso a telefones, linhas de ajuda, e não conseguem sair e pedir socorro. Outro agravante é a interrupção dos atendimentos em função do confinamento das pessoas que estariam ali para apoiar. Serviços médicos, ginecológicos, apoio psicossocial, todos esses estão mais difíceis de serem acessados devido ao isolamento social.
No episódio 2 do podcast da Corali, Papo Diversidade, nosso convidado Ug Cobra, psicanalista, traz algumas reflexões sobre este tema. Segundo Ug, o confinamento dá uma sensação de prisão e com isso as tensões e as angústias aumentam. A hiper convivência incomoda. Somado a isso, é importante dizer que existe violência em todas as classes sociais econômicas, porém com algumas diferenças devido as suas vivências. Nas classes mais altas, devido ao acesso às informações e ao conhecimento, existe uma consciência de que a violência física é algo proibido. Não significa que por isso ela não exista, mas há também outro tipo de violência que impera de modo significativo que é a violência moral. Já nas classes mais baixas, a violência faz parte da vida, da história das pessoas e é bem comum o homem estabelecer sua posição e seu valor na força física. Em ambos os casos, o confinamento faz com que os homens percam o seu filtro, seus impulsos mais violentos ficam sem freio, eles não conseguem descarregar a agressividade fora de casa e acabam descarregando em casa achando, de forma consciente ou não, que tem esse direito.
Ug comenta que esta é uma questão que homens devem sempre se perguntar: “Com que direito eu faço isso? Em que momento eu fui autorizado a elevar meu tom de voz, estufar meu peito e elevar minha postura física? O que de mim me autoriza ser agressivo com a minha esposa ou com minha colega de trabalho? Por que?” Essas são indagações que desconstroem pensamentos machistas e que todos os homens devem se fazer e então compreender que não possuem o direito de agredir.
Um cultura que perdura há séculos
Muitas das situações que levam às agressões estão arraigadas na nossa cultura, onde posturas e discursos acabam legitimando a inverdade de que mulheres são seres inferiores. São discursos machistas e misóginos propagados desde que a civilização existe. Neste episódio, Tatiana pergunta se o Presidente Jair Bolsonaro legitima o machismo quando cita que os homens devem voltar a trabalhar porque estão batendo nas mulheres, porém em nenhum momento ele fala em punição para os agressores ou políticas para proteção da mulher. Ug responde que sim, ele legitima, porém temos que entender que o Bolsonaro é fruto do seu tempo. Nos anos 50 e 60 o discurso machista era muito forte. Agora em 2020 já vemos alguma desconstrução do machismo tóxico, mas naquela época era muito mais difícil. Os homens barravam todas as oportunidades das mulheres terem acesso aos estudos, à participação política, ao exercício da cidadania, à reivindicação dos direitos. Então os homens continuamente, foram propagando o discurso machista, sempre oprimindo as mulheres, impedindo a sua fala, sua força. Eles impediram representatividade e sem representatividade não há corpo político. Sem uma mulher que inspire outras, fica difícil criar uma massa crítica. Deste modo, por não citar a necessidade da criação de políticas para proteção da mulher e punição dos homens, Jair Bolsonaro legitima o machismo. Ele legitima porque algo nele o faz legitimar sem ele perceber. Pessoas com este pensamento dificilmente ouvem a voz da razão dos argumentos sociológicos, históricos, antropológicos e psicológicos sobre a opressão. Cabe às novas gerações mudar essa realidade e, para isso, é necessário que os jovens sejam educados de forma diferente, buscando essa compreensão de que mulheres não são seres inferiores e nem tampouco, homens são superiores e possuem o direito de agredir.
Do lado da mulher, muitas não conseguem reagir à violência. Na visão da psicologia e da psicanálise, Ug esclarece que existe uma complexidade. No início do relacionamento parece normal e natural as juras de amor eterno e muitas abandonam suas carreiras, suas vidas e acabam se tornando reféns. Quando caem em si, vem um arrependimento e um sofrimento muito grande. A mulher para e pensa: “Tomei decisões que não me levaram a lugar nenhum…” Na experiência clínica do nosso convidado, elas abrem mão das suas vidas porque assim foram ensinadas e a dor delas é perceber que viviam sob esse comando sem perceber. Chegar neste tipo de constatação no processo terapêutico é dolorido demais. Portanto, são muitas variáveis a serem trabalhadas e isso leva tempo, mesmo entre as mulheres que se tornaram reféns por outros motivos que não o abandono de suas carreiras. É necessário elas entenderem que precisam fazer uma escolha: A escolha de não sofrer mais o abuso. Mas até que venha este entendimento, muitas não reagem pelo fato de não entenderem como foram parar ali. E, com o discurso machista, além de não entenderem, elas se sentem responsáveis e culpadas por estarem nesta situação. Outro ponto é o medo. Se um homem chega ao ponto de bater, de agredir fisicamente, ele é capaz de tudo. Então Ug pergunta, como ela vai encarar o incerto dessa situação? A vida dela pode estar em jogo e isso é dificílimo. Todos esses elementos permeiam a cabeça da mulher.
Como modificar esse cenário?
O trabalho clínico, segundo Ug, é ajudar essas mulheres a se organizarem, entenderem o que é real e o que não é. Aos poucos, na troca psicanalítica, as mulheres vão se fortalecendo e criando estratégias para a fuga. É necessário elas entenderem os seus direitos, suas possibilidades e se fortalecerem nas suas redes de apoio. Dizer que a mulher é culpada é propagar o discurso machista. Se ela se sente culpada, é porque assim foi ensinada. É um desafio enorme para ela desconstruir esse discurso na situação de violência, e é muito dolorido quando ela percebe que existe nela uma responsabilidade: a responsabilidade de se questionar e de mudar a situação.
É importante ressaltar aqui, que existe um ramo da Psicologia que é a Psicologia Social. Nosso convidado reforçou bastante o trabalho executado pela Psicologia Comunitária, empenhada em desenvolver campanhas e levar conhecimento para a comunidade. Veicular informações de forma gratuita e acessível é primordial para alcançar mulheres em situações de vulnerabilidade. Se algumas mulheres forem impactadas e conseguirem criar estratégias para sair da situação abusiva, outras se sensibilizarão e conseguirão sair também. A propagação do conhecimento e das informações, seja através de livros, TVs, internet, música, podcasts ou outras mídias, fará com que as mulheres abram suas mentes para a causa. Quanto mais mulheres falando sobre isso, melhor. Tem que existir a união, a organização social, os grupos de mulheres que se protegem, se ajudam e se empoderam. Os meios de comunicação não podem ser elitizados.
Quanto aos homens, Ug comenta que cabe a cada um fazer a sua parte. Em reuniões onde somente homens estão presentes, é normal surgirem piadas sobre as mulheres, sempre mostrando o mesmo discurso de que as mulheres são subservientes, que são um pedaço de carne, cujo direcionamento é dar prazer ao homem e suprir suas carências. Neste momento, é importante que os homens mais elucidados se posicionem. Quando ouvir opiniões machistas e misóginas, ali em meio a outros homens, tem que colocar uma nova visão, tem que desconstruir o discurso machista. Ug comenta que o homem tem uma dívida histórica com as mulheres e cabe a ele o papel de aliado. O homem que quer exercer um domínio sobre a mulher, supostamente está dizendo que é superior a ela e o trabalho de desconstrução desse comportamento é muito grande. Quando se pergunta o por quê disso, eles não sabem responder e se perdem nos seus argumentos. Da mesma forma, os homens precisam entender que se não temos representatividade feminina na política, na tecnologia ou nas empresas, é porque isso é fruto de uma construção social e não porque as mulheres não querem ou não servem para isso. As mulheres sempre foram oprimidas e dizer que os homens estão ocupando a maioria dos espaços porque sempre foi assim, é um pensamento muito essencialista. “É assim porque sim.” No entanto, a história atravessa a nossa vida mostrando a opressão e a construção social. Ug reforça: É preciso ter profundidade na nossa fala.
Precisa-se de apoio, agora mais do que nunca
Como dicas finais, para que possamos ajudar as mulheres que estão sendo vítimas de violência neste momento de pandemia, Ug coloca: Criem muitos conteúdos, veiculem informação, dêem espaço de fala para as mulheres. Se estiver perto de algum caso de violência, traga essa mulher para perto de você, escute o que ela tem para dizer. Tentem descobrir juntos meios e possibilidades de escape. Tente conectar essa pessoa a um bom profissional. Ouça quem sofre, com ouvidos sem preconceitos ou obviedades. Ouça com ouvidos humanos e acolha, entenda, se coloque no lugar dela e busque, através da sua rede, abrir uma possibilidade para que esta mulher se salve da situação. Existem inúmeros portais, blogs, coletivos femininos na internet oferecendo informação. Existem também vários profissionais atendendo gratuitamente durante a quarentena. Busque ajuda. Denuncie. Na era da desinformação, uma grande ajuda é fornecer informações de qualidade e abrir oportunidades.
Nós, time Corali, estamos sensibilizadas e emocionadas com as notícias sobre as violências. Queremos, em consonância com as dicas do Ug, levar cada vez mais informação de qualidade para mais e mais pessoas. Queremos compartilhar histórias, levar conhecimento, falar sobre a importância da igualdade de gênero, do respeito, da democracia. Vamos falar mais sobre o feminismo, sobre a luta de classes, sobre a equidade nas empresas. Queremos que o nosso ativismo gere um impacto social. Queremos aprender e ensinar. Por fim deixamos aqui nosso apelo: Peça ajuda, não se omita, não se cale. Solidarizem-se. Se estiver perto de alguém que precise de ajuda, salve essa vida.
Ao Ug, todo o nosso agradecimento pelas contribuições dadas no canal Papo Diversidade.