“Estamos em estado de emergência. Pessoas negras estão morrendo neste estado de emergência… Não podemos ver isso como um caso isolado…. A razão pela qual os edifícios estão sendo queimados não é apenas pelo o nosso irmão George Floyd… Eles estão queimando porque as pessoas aqui em Minnesota estão dizendo para as pessoas em Nova York, para as pessoas na Califórnia, para pessoas em Memphis, para pessoas de todo o país: Basta!!! Não somos responsáveis pela doença mental que foi infligida a nosso povo pelo governo Estadunidense, instituições e pelas pessoas que estão em posições de poder. Eu não dou a mínima se eles queimaram a loja Target porque a Target deve estar nas ruas conosco pedindo a justiça que nosso povo merece!! Onde estava o AutoZone na época em que Pilhando Castile estava assassinado em um carro… Onde eles estavam? Então, se você não está vindo em defesa do povo, então não desafie-nos enquanto jovens e outras pessoas frustradas e instigadas pelas pessoas que você paga… Os jovens estão respondendo a isso… Eles estão enfurecidos e há uma maneira de pará-los. Prendam os policiais, processem os policiais, processem todos os policiais. Não apenas alguns deles, não apenas aqui em Minneapolis. Processem os policiais em todas as cidades da América onde nosso povo está sendo assassinado. Processem-os em todos os lugares. Este é o ponto de partida. Processem a polícia. Façam seu trabalho. Façam valer o que vocês dizem que este país deveria ser: A terra da liberdade para todos. Não tem havido liberdade para o povo negro. E estamos cansados. Não nos fale sobre saques. Vocês são os saqueadores. Os Estados Unidos saquearam o povo negro. Os EUA saquearam…. Nós aprendemos isso com você. Nós aprendemos violência com você. A violência foi o que aprendemos. Então se você quer que façamos melhor, faça melhor porr*%$#!”*
*Esta citação é a transcrição na íntegra da fala realizada neste vídeo.
Esse discurso representa a indignação de um povo que vem sofrendo com o racismo estrutural* desde que chegaram na América como escravos.
O assassinato de George Floyd é apenas a pontinha do iceberg do racismo estruturado ao longo dos séculos.
Não precisamos entrar em detalhes sobre a escravidão e os absurdos relacionados à violência nessa época. Negros e negras foram submetidos a trabalhos pesados, chicotadas, estupros, venda dos seus filhos, venda do seu par, castigos inumanos. Entretanto, é interessante neste momento contextualizar sobre a abolição e como a população negra passa a viver uma pseudo liberdade que permanece ainda nos dias de hoje.
A abolição da escravatura nos EUA
Comentando especificamente dos EUA, pois é lá que houve o assassinato de George Floyd e onde as revoltas estão mais marcantes, a configuração histórica é de um Estado anti-negro. Na década de 1850, os estados se dividiam entre estados que defendiam a abolição (Norte), devido ao crescimento industrial e do trabalho assalariado, e estados de economia agrícola (Sul), defensores da escravidão. Notem que a questão era econômica. Poucos viam a abolição como uma questão de direitos humanos.
Essa briga entre os estados evoluiu para o debate presidencial e quando Abraham Lincoln foi eleito presidente, os estados do sul se uniram em um movimento separatista nada satisfeitos com as ideias abolicionistas do novo presidente. Após a batalha de Gettysburg, em 1863, uma das mais importantes e que garantiu a união dos Estados, Abraham Lincoln decretou o fim da escravidão em todos os estados. Entretanto, a abolição só passou a vigorar após a completa derrota dos estados do sul, em 1865.
A população negra continuou escravizada mesmo após a abolição.
O decreto do fim da escravidão não gerou muito efeito para a população negra, representada por mais de 4,5 milhões de pessoas. Não houve integração social, muito pelo contrário, houve segregação racial, social e política, gerando problemas raciais que vivemos até os dias de hoje.
Isso fica claro nas leis Jim Crow, criadas por cidadãos brancos no sul dos EUA, reforçando a opressão à população negra. O Hospital de Atlanta dentre outros, por exemplo, não aceitava pacientes descendentes de negros e deixavam pessoas morrerem, vítimas da segregação racial. Crianças negras eram proibidas de frequentar as escolas junto a crianças brancas. Não era aceitável pessoas negras e brancas andarem nos mesmos vagões de trem. Assim, as leis Jim Crow mantiveram a hierarquia e a supremacia branca. Eram leis discriminatórias e submetiam as pessoas negras a todo tipo de humilhação, marginalização, assédio, menosprezo, tornaram-nas pessoas sem direitos, e muitas vezes vítimas de assassinato. (Estamos falando sobre hoje? Não. Essas leis vigoraram entre 1870 e 1965)
Neste contexto, temos o grande líder Martin Luther King Jr. que tinha como um dos grandes objetivos derrubar essas leis. Luther King lutava contra os “códigos negros”, que proibiam que pessoas negras comprassem imóveis, tivessem direito ao voto ou qualquer participação na política, gerissem seus negócios e circulassem livres pela cidade. Mesmo com as emendas constitucionais que buscavam garantir os direitos dos ex escravos, os brancos se negavam a aceitar os negros como seres humanos e matavam e intimidavam todos aqueles que os desafiassem. O racismo era visto como “Darwinismo Social”, ou seja, era condizente com a teoria da evolução das espécies, a qual afirma que na natureza os mais fortes sobrevivem. Era tudo tão escravocrata, que o historiador Douglas A. Blackmon chamou de “escravatura com outro nome”.
A luta se agravou com a indignação da população negra após a segunda guerra mundial, pois eles foram aos campos de batalha, serviram ao país, usaram o uniforme do exército americano e por isso acreditavam que, mais do que nunca, haviam conquistado o direito de serem considerados cidadãos, mesmo que tivessem sido treinados em quartéis separados dos brancos. Após muitas e muitas manifestações, tendo como marco a prisão de Rosa Parks em 1955, que se negou a dar o seu lugar no ônibus para um homem branco, o Movimento dos Direitos Civis cresceu. Mais uma vez Martin Luther King Jr liderou várias ações que resultaram em uma série de decisões legislativas e judiciais que derrubaram as leis estaduais e locais que impunham a segregação racial no sul dos Estados Unidos, e que mais tarde ficaram conhecidas por Leis de Jim Crow.
As leis de Jim Crow foram derrubadas em 1965, mas seus efeitos perduram com muitas repercussões.
A segregação nunca acabou. O Congresso aprovou as leis de Direitos Civis e concederam o Direito ao Voto em 1967, mas com lei ou sem lei, a segregação continua. A população negra não possui as mesmas oportunidades, o mesmo acesso à educação, o mesmo acesso à empregos de qualidade e à saúde. A polícia, formada majoritariamente por homens brancos, age mais violentamente com as pessoas negras e isso, obviamente, gera comoção e raiva.
Após a segunda guerra, os brancos foram progressivamente deixando alguns bairros e cidades onde os negros coabitavam. Assim, os bairros foram identificados como bairros negros ou bairros brancos. Isso fez com que os investimentos fossem para os bairros brancos, deixando os bairros negros à beira da miséria. Mulheres foram prostituídas e a droga tomou espaço. Era uma questão de sobrevivência, que vemos até hoje. Esse movimento, muito incentivado pelas imobiliárias, foi definido como Redlining. Estamos em 2020 e esses bairros ainda sofrem as consequências econômicas geradas nessa época.
Outro fenômeno social muito observado é a gentrificação, que expulsa a população de baixa renda de um determinado local para dar espaço à especulação imobiliária. A partir desse fenômeno, um bairro pobre é transformado em um bairro rico sem, entretanto, beneficiar de maneira alguma quem antes estava ali, na maioria das vezes uma população majoritariamente negra a qual acaba sendo ainda mais marginalizada.
Ainda hoje e mesmo sendo proibido, existe discriminação para aluguéis de imóveis, mesmo a pessoa negra apresentando todas as garantias de pagamento. Ainda hoje existe a dificuldade das pessoas negras abrirem uma conta bancária. Muitas vezes não lhes é permitido nem entrar no banco. Ainda hoje existe a discriminação nas escolas e nas empresas. Ainda hoje eles são chamados de macacos. Ainda hoje são revistados, parados e espancados pela polícia mesmo sem terem cometido crime algum. Ainda hoje são mortos pela polícia na sua própria casa mesmo tendo 14 anos de idade.
Pessoas negras têm três vezes mais chances de serem mortas pela polícia, segundo a pesquisa Mapping Police Violence. Os níveis de crimes violentos nas cidades dos EUA não determinam as taxas de violência policial. Em Oklahoma, uma das cidades mais racistas, a taxa de assassinatos cometidos pela polícia é mais do que o dobro da taxa de crimes. O ano de 2019 teve somente 27 dias sem assassinatos de pessoas negras por policiais. 99% dos assassinatos cometidos pela polícia entre 2013 e 2019 não resultaram em policiais acusados de um crime.
“I can’t breathe”* faz mais sentido agora? *I can’t breathe: Em inglês significa “eu não consigo respirar”.
#racismoécrime #vidaspretasimportam
*Para saber mais sobre o termo racismo estrutural, indicamos assistir a esse vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=_cCqIYediyg
Referências e sugestões:
https://mappingpoliceviolence.org/
https://www.battlefields.org/learn/articles/civil-war-facts#When%20did%20the%20Civil%20War%20begin?
https://www.natgeo.pt/historia/2020/02/leis-jim-crow-criaram-escravatura-com-outro-nome
https://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_de_Jim_Crow#Origens_das_leis_de_Jim_Crow